domingo, 25 de setembro de 2011

Resíduo

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Ai daqueles



Ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram que a mágoa nova
virasse chaga antiga
ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é feito pão em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não porque não tem asa.

Paulo Leminski


quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Junto a ti esquecerei


I
Junto a ti esquecerei as inúmeras partidas
- as cordas e as amarras nunca se quebraram
e talvez por isso eu permanecerei imóvel sob a tua influência...
Tu pesarás para mim como produto de âncoras
Como a pedra amarrada do pescoço do pecador.
Os portos passarão a ser beira de cais
as terras longínquas nada mais me dizem
- quebrei a bússola para evitar a tentação.
Tua presença é poderosa como urros na floresta.
Sinto que extingues em mim
a sombra dos navegadores.

II
A tua atitude te eleva para o alto.
Vejo que cortaste definitivamente todas as amarras.
Daqui eu advinho os olhos dos homens
perdidos no tempo que nada descobrirão de ti.
Deixa que os não-poetas falem de tua beleza,
esses nunca compreenderão o que há em ti de sombra,
de sementes germinando, de vozes de cavernas.
Nem ao menos que é o teu olhar que nos aproxima
que nos torna irmãos para o resto do tempo.
Eu te reconheceria entre todas, porque tua presença eu a pressinto.
Deixa que tuas formas eles a tomem pela essência.
Esses te perderão ainda mais
e nunca compreenderão tuas inúmeras sugestões
que tu mesma desconheces.

III
Esquecerei os teus convites de fuga.
As coisas presentes serão absolutamente insignificantes.
Sentir-me-ei em tua presença como o primeiro homem
que se ia apoderando de todas as formas desconhecidas.

IV
Esquecerei todos os convites de fuga.
Os portos serão para nós apenas
as âncoras e as amarras.
Nossos olhos não mais distinguirão
caravelas e transatlânticos sobre o mar.
Nossos ouvidos não mais perceberão
o barulho das ondas que são um chamamento constante.
Então leremos poetas bucólicos
debaixo de uma árvore que deverá ser frondosa.
Indefinidamente rodaremos em torno dela como num carrosel,
indefinidamente estarás comigo.

João Cabral de Melo Neto

domingo, 18 de setembro de 2011

Meu coração tem pretensões.
E dai?!
O mundo tem o vazio de pretensões bem maior ainda.

A gramática, a mesma árida gramática, transforma-se em algo parecido a
uma feitiçaria evocatória; as palavras ressuscitam revestidas de carne e
osso, o substantivo, em sua majestade substancial, o adjetivo, roupa
transparente que o veste e dá cor como um verniz, e o verbo, anjo do
movimento que dá impulso á frase.


Charles Baudelaire

sábado, 10 de setembro de 2011

Menos furacão,
mais maresia.

Mais corpo, mais água, mais tarde.
Menos amanhã.

Mais janela e mais sol.
Menos consideração.

Mais saliva, o abstrato do beijo.

Menos eu sei.
Mais grito.

Menos reto, menos ser.
Mais parabólica.

O sonho é um bom lugar de se está,

mas não tenho sono.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Lá longe


Lá longe
Onde a polícia lavra os campos
Lá longe
Onde ninguém cresce nem diminui,
Lá longe
Onde navios de guerra dormem dentro de garrafas.
Lá longe
Onde Oriente e Ocidente
Debruçados à janela dialogam.
Lá longe
Onde cada um
Tem seu pão, sua dama e sua paz,
Lá longe
Onde os descantos antigos movem o rio,
Lá longe
Onde forma, palavra e energia se unem,
Lá longe
Onde Deus caminha com pés de alfombra,
Lá longe
Onde "Quero nascer" a morte diz.

Murilo Mendes

quarta-feira, 7 de setembro de 2011



Ninguém precisa se assustar com a distância...os afastamentos que acontecem. Tudo volta! E voltam mais bonitas, mais maduras, voltam quando tem de voltar, voltam quando é pra ser. Acontece que entre o ainda-não-é-hora e nossa-hora-chegou, muita gente se perde...

terça-feira, 6 de setembro de 2011



Se as portas da percepção estivessem limpas
Tudo pareceria para o homem tal como é: infinito

sábado, 3 de setembro de 2011

Quando penso na alegria voraz


com que comemos galinha ao molho pardo,

dou-me conta de nossa truculência.

Eu, que seria incapaz de matar uma galinha,

tanto gosto delas vivas

mexendo o pescoço feio

e procurando minhocas.

Deveríamos não comê-las e ao seu sangue?

Nunca.

Nós somos canibais,

é preciso não esquecer.

E respeitar a violência que temos.

E, quem sabe, não comêsssemos a galinha ao molho pardo,

comeríamos gente com seu sangue.

Minha falta de coragem de matar uma galinha
e no entanto comê-la morta
me confunde, espanta-me,
mas aceito.
A nossa vida é truculenta:
Nasce-se com sangue
e com sangue corta-se a união
que é o cordão umbilical.
E quantos morrem com sangue.
É preciso acreditar no sangue
como parte de nossa vida.
A truculência.
É amor também.

Clarice Lispector



Carpe Diem


…aproveita o dia. Não deixes que termine sem teres crescido um pouco,
sem teres sido um pouco mais feliz,
sem teres alimentado os teus sonhos.
Não te deixes vencer pelo desalento.
Não permitas que nada tire o direito de
te expressares que é quase um dever.
Não abandones o anseio de fazer da tua vida
algo extraordinário…
Não deixes de crer que as palavras, o riso e a poesia
podem mudar o mundo…
Somos seres, humanos, cheios de paixão.
A vida é deserto e também oásis.
Aniquila-nos, lastima-nos, converte-nos em
protagonistas da nossa própria história…
Mas não deixes nunca de sonhar,
porque só através dos sonhos
pode ser livre o homem.
Não caias no pior erro, o silêncio.
A maioria vive num silêncio espantoso.
Não te resignes…
Não atraiçoes as tuas crenças. Todos necessitamos
de aceitação, mas não podemos remar
contra nós mesmos.
Isso transforma a vida num inferno.
Desfruta o pânico que provoca ter
a vida pela frente…
Vive-a intensamente, sem mediocridades.
Pensa que em ti está o futuro e em
enfrentar a tua tarefa com orgulho, impulso
e sem medo.
Aprende de quem pode ensinar-te…
Não permitas que a vida te passe por cima
sem que a vivas…