terça-feira, 24 de julho de 2012

A esperança



Injeta sangue
no meu coração,
enche-me até o bordo das veias!
Mete-me no crânio pensamentos!
Não vivi até o fim o meu bocado terrestre,
sobre a terra
não vivi o meu bocado de amor.
Eu era gigante de porte,
mas para que este tamanho?
Para tal trabalho basta uma polegada.
Com um toco de pena, eu rabiscava papel,
num canto do quarto, encolhido,
como um par de óculos dobrado dentro do estojo.
Mas tudo que quiserdes eu farei de graça:
esfregar,
lavar,
escovar,
flanar,
montar guarda.
Posso, se vos agradar,
servir-vos de porteiro.
Há, entre vós, bastante porteiros?
Eu era um tipo alegre,
mas que fazer da alegria,
quando a dor é um rio sem vau?
Em nossos dias,
se os dentes vos mostrarem
não é senão para vos morder
ou dilacerar.
O que quer que aconteça,
nas aflições,
pesar...
Chamai-me!
Um sujeito engraçado pode ser útil.
Eu vos proporei charadas, hipérboles
e alegorias,
malabares dar-vos-ei
em versos...
Eu amei...
mas é melhor não mexer nisso.
Te sentes mal?

Vladimir Mayakovsky


Nos demais


Nos demais,
todo mundo sabe,
o coração tem moradia certa,
fica bem aqui no meio do peito,
mas comigo a anatomia ficou louca,
sou todo coração.

Vladimir Mayakovsky 

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Fados Contrários

Martin Johnson Heade

Num álbum
Diz à flor a borboleta:
“Vamos, irmã, tudo é luz!
Há muito prisma doirado
Que pelos ares transluz…
Tuas pétalas são asas…
Das nuvens nas tênues gazas,
D’aurora nos seios nus
Tens um ninho entre perfumes…
Vamos boiar, entre lumes
Desses páramos azúis”.
À linda filha dos ares,
Responde a silvestre flor:
“Eu amo o gemer das auras
E o beijo do beija-flor…
Se és do céu a violeta,
Sigo um destino menor.
Buscas o céu — eu a alfombra,
Queres a luz — quero a sombra,
Pedes glória — eu peço amor.

Castro Alves

Matinal


Entra o sol, gato amarelo, e fica
à minha espreita, no tapete claro.
Antes de abrir os olhos, sei que o dia
Virá olhar-me por detrás das árvores.

Ah! sentir-me ainda vivo sobre a face da Terra
enquanto a vida me devora...
Me espreguiço, entredurmo... O anjo da luz espera-me
Como alguém que vigiasse uma crisálida.

Pé ante pé, do leito, aproxima-se um verso
para a canção de despertar;
os ritmos do tráfego vibram como uma cigarra,

a tua voz nas minhas veias corre,
e alguns pedaços coloridos do meu sonho
devem andar por esse ar, perdidos...


Mario Quintana

terça-feira, 17 de julho de 2012

O amor é síntese




Por favor, não me analise
Não fique procurando cada ponto fraco meu.
Se ninguém resiste a uma análise profunda,
Quanto mais eu...

Ciumento, exigente, inseguro, carente
Todo cheio de marcas que a vida deixou
Vejo em cada grito de exigência
Um pedido de carência, um pedido de amor.

Amor é síntese
É uma integração de dados
Não há que tirar nem pôr
Não me corte em fatias
Ninguém consegue abraçar um pedaço
Me envolva todo em seus braços
E eu serei o perfeito amor.

Mario Quintana

domingo, 15 de julho de 2012

O Analfabeto Político



O pior analfabeto
É o analfabeto político,
Ele não ouve, não fala,
nem participa dos acontecimentos políticos.

Ele não sabe que o custo de vida,
o preço do feijão, do peixe, da farinha,
do aluguel, do sapato e do remédio
dependem das decisões políticas.

O analfabeto político
é tão burro que se orgulha
e estufa o peito dizendo
que odeia a política.

Não sabe o imbecil que,
da sua ignorância política
nasce a prostituta, o menor abandonado,
e o pior de todos os bandidos,
que é o político vigarista,
pilantra, corrupto e o lacaio
das empresas nacionais e multinacionais.



Berthold Brecht

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Nuevo Canal Interoceánico

Dorothy Lathrop
Te propongo construir
un nuevo canal
sin esclusas
... ni excusas
que comunique por fin
tu mirada
atlántica
con mi natural
pacífico.

Mario Benedetti

terça-feira, 10 de julho de 2012

Entre os teus lábios

Jean-Marie Poumeyrol
Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.


No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.


Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.


Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.


Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.



Eugénio de Andrade

Jazz



Deixa subirem os sons agudos, os sons estrídulos do jazz no ar.
Deixa subirem: são repuxos: caem…
Apenas ficarão os arroios correndo sem rumor dentro da noite.
E junto a cada arroio, nos campos ermos,
Um anjo de pedra estará postado.

O Anjo de Pedra que está sempre imóvel por detrás de todas as coisas –
Em meio aos salões de baile, entre o fragor das batalhas, nos comícios das praças públicas –
E em cujos olhos sem pupilas, brancos e parados,
Nada do mundo se reflete.

Mário Quintana

domingo, 8 de julho de 2012

sábado, 7 de julho de 2012

Pausa

Dina Kanto

Na correria da vida apressada,
Um silêncio, para fazer parar o ruído
Uma paragem, para fisgar de longe o alvo
Uma pausa, para poder pensar a vida
Uma pausa, para saborear mais
E fruir somente,
Aquilo que existe,
Aquilo que existe e é real,
Profundo, verdadeiro, autêntico
Para ganhar distância,
Sem recuar,
Sair de cena, fazer vazio
E só então prosseguir,
Por entre a memória do passado
E a miragem do futuro,
Procurar sentido
E deixar-me ir,
Apenas ir,
Pensar para agir,
Partir,
Viajar para sentir,
Fugir,
Mas sempre para depois poder regressar.

Rainer Maria Rilke




Bogna Kuczerawy

A saudade é isto: viver nas ondas
E não ter pátria no tempo.
E desejos são isto: diálogos baixos
De horas diárias com a eternidade.

E a vida é isto: até que de um ontem
surge a mais solitária das horas
Que, sorrindo diferente das outras irmãs,
Vai calada ao encontro do eterno.


Rainer Maria Rilke

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Falar

Duy Huynh
A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.

A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.

Ferreira Gullar

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Um dia


 Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.
O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.
Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.
Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada


Sophia de Mello Breyner Andresen
Palavras que chamavam pelas coisas, 
que eram o nome das coisas. 
Palavras brilhantes como as escamas de um peixe, 
palavras grandes e desertas como praias. 
E as suas palavras reuniam os rostos dispersos da alegria da terra.

Sophia de Mello Breyner Andresen