quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Soneto sonhado


Meu tudo, minha amada e minha amiga,
Eis, compendiada toda num soneto,
A minha profissão de fé e afeto,
Que à confissão, posto aos teus pés, me obriga.

O que n'alma guardei de muito antiga
Experiência foi pena e ansiar inquieto.
Gosto pouco do amor ideal objeto
Só, e do amor só carnal não gosto miga.

O que há de melhor no amor é iluminância,
Mas, ai de nós! não vem de nós. Viria
De onde? Dos céus?... Dos longes de distância?...

Não te prometo os estos, a alegria,
A assunção...Mas em toda circunstância
Ser-te-ei sincero como a luz do dia.

Manuel Bandeira

sábado, 27 de outubro de 2012

Lindsey Carr


Meus dias foram aquelas romãs brunidas
repletas de cor e sumo e doçura compacta.
Foram aquelas dálias, redondas colméias
cheias de abelhas, de vento e de horizontes.
Meus dias foram aquelas negras raízes
escravas, caminhando por humildes subterrâneos.
Foram aquelas rosas duramente construídas
e logo sopradas por lábios displicentes.
Ah! meus dias foram aqueles sóbrios cactos
de raríssima flor encravada em coroas de espinhos.
Meus dias foram estes altos muros robustos,
este peso de enormes pedras, este cansado limite,
onde pousavam solidões, palavras, enganos
com o brilho, a inconstância desta incerta borboleta. 

Cecília Meireles, 1988, p. 152.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Susan Jamison

Minha muito querida Marlene: te escrevo esta carta de manhã cedo, a hora em que a gente humilde e os soldados e os marinheiros costumam levantar-se, para enviar-te algumas palavras caso esteja sentindo-se só ou algo assim.
Te beijo com força (...) Estava muito calor para fazer amor, salvo debaixo d'água, e eu nunca fui muito bom para isso.
Estás ficando tão bela que terão que fazer fotos para teu passaporte de três metros de altura. O que realmente queres fazer de tua vida? Partir o coração de todos por uma moeda de dez centavos? Sempre poderá partir o meu por uma de cinco centavos, e eu poria a moeda.
Ernest Hemingway

segunda-feira, 22 de outubro de 2012




A palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida para os povos chamados guarani e como eles imaginam o transcendente. As experiências da vida são experiências de palavra. Deus é palavra. (...) O nascimento, como o momento em que a palavra se senta ou provê para si um lugar no corpo da criança. A palavra circula pelo esqueleto humano. Ela é justamente o que nos mantém em pé, que nos humaniza. (...) Na cerimônia de nominação, o xamã revelará o nome da criança, marcando com isso a recepção oficial da nova palavra na comunidade. (...) As crises da vida – doenças, tristezas, inimizades etc. – são explicadas como um afastamento da pessoa de sua palavra divinizadora. Por isso, os rezadores e as rezadoras se esforçam para ‘trazer de volta’, ‘voltar a sentar’ a palavra na pessoa, devolvendo-lhe a saúde.(...) Quando a palavra não tem mais lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um devir, um não-ser, uma palavra-que-não-é-mais. (...) Ñe'ẽ e ayvu podem ser traduzidos tanto como ‘palavra’ como por ‘alma’, com o mesmo significado de ‘minha palavra sou eu’ ou ‘minha alma sou eu’. (...) Assim, alma e palavra podem adjetivar-se mutuamente, podendo-se falar em palavra-alma ou alma-palavra, sendo a alma não uma parte, mas a vida como um todo.

 Ñe'ẽ – a palavra alma,  Graciela Chamorro

sábado, 20 de outubro de 2012

Sacode as nuvens




Ernst Haeckel
Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.


Sophia de Mello Breyner
 

 

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Sete dias na vida de uma luz

Marie Desbons


durante sete noites
uma luz transformou
a dor em dia
uma luz que eu não sabia
se vinha comigo
ou nascia sozinha

durante sete dias
uma luz brilhou
na ala dos queimados
queimou a dor
queimou a falta
queimou tudo
que precisava ser cauterizado

milagre além do pecado
que sentido pode ter
mais significado?

Paulo Leminski

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Chove



A chuva cai.
Os telhados estão molhados,
Os pingos escorrem pelas vidraças.
O céu está branco,
O tempo está novo.
A cidade lavada.
A tarde entardece,
Sem o ciciar das cigarras,
Sem o jubilar dos pássaros,
Sem o sol, sem o céu.
Chove.
A chuva chove molhada,
No teto dos guarda-chuvas.
Chove.
A chuva chove ligeira,
Nos nossos olhos e molha.
O vento venta ventado,
Nos vidros que se embalançam,
Nas plantas que se desdobram.
Chove nas praias desertas,
Chove no mar que está cinza,
Chove no asfalto negro,
Chove nos corações.
Chove em cada alma,
Em cada refúgio chove;
E quando me olhaste em mim,
Com os olhos que me seguiam,
Enquanto a chuva caía
No meu coração chovia
A chuva do teu olhar.

Ana Cristina Cesar





domingo, 14 de outubro de 2012

Liberdade

Susan Jamison

Uma mariposa entrou no quarto.
Rodopiou o teto.
confrontou as paredes.
Pareceu cansada.
Mas às vezes a liberdade é simples.
Basta apagar a luz
logo, logo, suas asas intuem a janela.
Quem sabe um dia consigo colocar nossa liberdade 
na asa de uma mariposa.

Gennady Privedentsev
I
O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.
II
Conheço de palma os dementes de rio.
Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama
e de Rogaciano.
Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar
no horizonte.
Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruas
de Corumbá.
Me disse que as coisas que não existem são mais
bonitas.
IV
Caçador, nos barrancos, de rãs entardecidas,
Sombra-Boa entardece. Caminha sobre estratos
de um mar extinto. Caminha sobre as conchas
dos caracóis da terra. Certa vez encontrou uma
voz sem boca. Era uma voz pequena e azul. Não
tinha boca mesmo. "Sonora voz de uma concha",
ele disse. Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares
conversamentos de gaivotas. E passam navios
caranguejeiros por ele, carregados de lodo.
Sombra-Boa tem hora que entra em pura
decomposição lírica: "Aromas de tomilhos dementam
cigarras." Conversava em Guató, em Português, e em
Pássaro.
Me disse em Iíngua-pássaro: "Anhumas premunem
mulheres grávidas, 3 dias antes do inturgescer".
Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas:
"Borboletas de franjas amarelas são fascinadas
por dejectos." Foi sempre um ente abençoado a
garças. Nascera engrandecido de nadezas.
VI
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas...
E se riu.
Você não é de bugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
gramática.
VI
Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.

Manoel de Barros

sábado, 13 de outubro de 2012





Jean-Léon Gérôme
 
Minha muito querida Marlene: te escrevo esta carta de manhã cedo,
...a hora em que a gente humilde e os soldados e os marinheiros costumam levantar-se, para enviar-te algumas palavras caso esteja sentindo-se só ou algo assim. Te beijo com força (...) Estava muito calor para fazer amor, salvo debaixo d'água, e eu nunca fui muito bom para isso.  Estás ficando tão bela que terão que fazer fotos para teu passaporte de três metros de altura. O que realmente queres fazer de tua vida? Partir o coração de todos por uma moeda de dez centavos? Sempre poderá partir o meu por uma de cinco centavos, e eu poria a moeda.

Ernest Hemingway

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Delírio



No parque morno, um perfumista oculto
ordenha heliotrópios...
Deixa aberta a janela...

Minhas mãos sabem de cor o teu corpo,
e a alcova é morna...
Apaguemos a luz...

Não sentes na tua boca
um gosto de papoulas?...

Passa o lenço de seda de tuas mãos
sobre minha fronte,
e não me digas nada:
a febre está, baixinho, ao meu ouvido,
falando de ti...

Guimarães Rosa

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Gertrudes Pede um Conselho

Jacek Yerka
 
 



De fato, nos últimos tempos, Tuda não passava nada bem. Ora sentia uma inquietação sem nome, ora uma calma exagerada e repentina. Tinha frequentemente vontade de chorar, e o que em geral se reduzia à vontade apenas, como se a crise se completasse no desejo. Uns dias, cheia de tédio, enervada e triste. Outros, lânguida como uma gata, embriagando-se com os menores acontecimentos. Uma folha caindo, um grito de criança, e pensava: mais um momento e não suportarei tanta felicidade. E realmente não a suportava, embora não soubesse propriamente em que consistia a felicidade. Caía num choro abafado, aliviando-se, com a impressão confusa de que se entregava, a não sei quem e não sei de que forma. Às lágrimas sucedia-se, acompanhando os olhos inchados, um estado de suave convalescença, de aquiescência a tudo. Surpreendia s todos com sua doçura e transparência e, ainda mais, forçava uma leveza de passarinho. Dava esmolas a todos os pobres, com a graça de quem joga flores. De outras vezes, enchia-se de força. Seu olhar tornava-se duro como aço, áspero como espinhos. Sentia que“podia”. Fora feita para “libertar”.

(...)

- Olhe, Tuda, o que me agradaria dizer-lhe é que você um dia terá o que agora procura tão confusamente. É uma espécie de calma que vem do conhecimento de si própria e dos outros. Mas não se pode apressar a vinda desse estado. Há coisas que só se aprende quando ninguém as ensina. E com a vida é assim. Mesmo há mais beleza em descobri-la sozinha, apesar do sofrimento. – A doutora sentiu um súbito cansaço, tinha a impressão de que a ruga nº 3, do nariz os lábios, afundara. Aquela menina fazia-lhe tão mal e ela queria estar de novo só. – Olhe, tenho certeza de que você ainda terá muita felicidade. Os sensíveis são simultaneamente mais infelizes e felizes que os outros. Mas dê um tempo ao tempo! – Como era vulgar com facilidade, refletiu sem amargura. – Vá vivendo… -Sorriu. E de repente Tuda sentiu aquele rosto entrando bem na sua alma. Não era da boca, nem dos olhos que vinha aquele ar… ar divino. Era como uma sombra terrivelmente simpática, vacilando sobre a doutora. E, no mesmo instante, Tuda soube que não mentira, ah, não! Uma alegria, uma vontade de chorar. Ah, ajoelhar-se diante da doutora, esconder o rosto no seu regaço, gritar: é isso que eu tenho, é isso! Só lágrimas! A doutora já não sorria. Pensava. Olhando-a, assim, de perfil, Tuda já não a entendia mais. De novo, uma estranha. Buscou-a depressa, à outra, a divina:- Por que a senhora disse: “o que me agradaria dizer-lhe…”? Então não é a verdade? A menina era mais perspicaz do que pensara. Não, não era a verdade. A doutora sabia que se pode passar a vida inteira buscando qualquer coisa atrás da neblina, sabia também da perplexidade que traz o conhecimento de si própria e dos outros. Sabia que a beleza de descobrir a vida é pequena para quem procura principalmente a beleza nas coisas.

(...)

Clarice Lispector

 

 


Roma




Charles Spencelayh

Sua intenção colonial quer me decifrar. 
Diferente do costume das histórias, 
roma piedosa só conheço quando pregada nos murais dos templos.
A verdade é que seu hábito é implacável com minha carne, 
não vacila em exigir minhas ilusões.
Talvez porque um dia recusei sua promessa romântica,
que não aceita feminina a lâmina o meu punhal,
acena-me, afinal, com suas persistentes gerações de violência
também templos de umbrais altos de onde mouros bordam cordas de éter para enfrentar a queda. 
Não sou um deus, mas me vingo.
Tenho minha ciência. 
Fez-me um poeta lunático a desabrochar. 
Então, não te toco no silêncio, 
Se o fizesse, é possível que só nos restasse pele.
Teríamos todo o verniz corroído pela verdade. 
Sentiríamos terror?
 Paixão?
Isso me provoca dúvidas: 
Tudo o que preciso está sobre seus cacos?
Qual é razão de mostrarmos nossos corpos?
Na quarto por cima de minha existência,
seu jogo é fazer de nossa união uma festa lisérgica.
Durante certo tempo entorpece os gritos de nossos espectros, 
rege habilidosa a orquestra de nossos desejos ímpares.
Mas se não temos tato, 
no escuro, 
as formas que podemos esculpir são a nossa própria fotografia.
o que a memória evoca são liberdades borradas.
Nosso olhar sempre nos persegue
Está certo.
Confesso, 
estou sendo puritano. 
É crível o sol aparecer
É possível buscar a melhor forma de estar no mundo.
Em horas amenas encontrar-se atemorizado com o outro nas bordas de pelejas gigantes.
Cada um em sua margem. 
Sem telescópio. Sem microscópio. Só bandeiras.
Ousadas línguas humanas a escalar Olimpos de vontade. 
Movidos da intuição de que não nascemos sésseis. 
De que ali, bem aqui,
 não há impérios
São serranias fantásticas que nos restituirão o passo
e no outro passo (e não no outro)
nossa deidade adocicada.









Me lembro de ficar super concentrada e morder a boca
e tentar acompanhar a sequência toda sem me perder nem um minuto.
Eu lia assim, com sotaque
"go, go, go, said the
bird,
human kind cannot bear
very much on reality..."

Eu procurava as chaves, a questão pendente
atravessava a luz deserta da praia de cabo a rabo, de vestido
voltava sobre os meus próprios passos, ficava na varanda
atravessava os dias como uma planta perdida no deserto
naquele sol mais quieta. “Aqui eu te conheço”.
Eu não sabia que sabia, aquela planta
a pauta se calasse... Ouvia: “se você dançar...”
Só de memória me espanto, de cabeça caio e saio, de cor, e pronto
socorram-me então nesse esforço de raízes
ouvindo a chuva nas telhas de menos dessa casa escura
com goteiras de verão e falta dágua, sem transporte
descendo a estrada de pó nas sandálias havaianas
fazendo uma bolha no calor, um lanho rubro, repetindo.
“Ana, na janela tem um recadinho”, chegando, lendo...
"Tive que correr para pegar o posto aberto" um curativo aberto, um sanduíche aberto, um fantasma romântico no peito
“se você dançar..."
Me lembro da rádio a mil dentro do carro,
e de uma saudade inata.

CESAR, Ana Cristina. Aí é que são elas. In: Inéditos e dispersos.