Arthur Lavine |
Também, que idéia a sua:
andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar.
O
vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto
ia pedir-lhe um auxílio.
—
Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um?
—
Não fumo, respondeu o outro.
Então
ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo, consultou orelógio:
—
9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.
—
Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio.— Como?
—
Já disse. Vai passando o relógio.
—
Mas ...
—
Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.
—
Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha
enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.
O
outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio
mudou
de
dono.
—
Agora posso continuar?
—
Continuar o quê?
—
O passeio. Eu estava passeando, não viu?
—
Vi, sim. Espera um pouco.
—
Esperar o quê?
—
Passa a carteira.
—
Mas...
—
Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade?
—
Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio qualquer,
veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar...
—
E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?
—
Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.
—
Diga.
—
Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.
—
Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto
do assalto?
—
Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?
—
É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na testa do
cara. Sou civilizado, manja?
—
Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me
faz falta, palavra de honra.
—
Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.
—
Não precisa, não precisa.
—
Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me
assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau.
—
Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.
—
Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?
—
Claro.
—
Você, o assaltado. Certo?
—
Confere.
—
Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil.
—
Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem mais
dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo
é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e
disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo.
-Tá
bom, não se discute.
—
Vamos, procure nos... nos escaninhos.
—
Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos outros. Você
me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade.
—
Deixe ao menos tirar os documentos?
—
Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você,
isso de jeito nenhum. É contra as regras.
—
Nem uma de quinhentos? Uma só.
—
Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso você
precisa. Pela pinta se vê que mora perto.
—
Nem eu ia aceitar dinheiro de você.
—
Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom,
tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha.
Sacou
da arma e deu-lhe um tiro no pé.
Carlos
Drummond de Andrade, Texto extraído do livro "Os dias lindos",
Livraria José Olympio Editora — Rio de Janeiro, 1977, pág. 54.
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