sábado, 3 de setembro de 2011

Quando penso na alegria voraz


com que comemos galinha ao molho pardo,

dou-me conta de nossa truculência.

Eu, que seria incapaz de matar uma galinha,

tanto gosto delas vivas

mexendo o pescoço feio

e procurando minhocas.

Deveríamos não comê-las e ao seu sangue?

Nunca.

Nós somos canibais,

é preciso não esquecer.

E respeitar a violência que temos.

E, quem sabe, não comêsssemos a galinha ao molho pardo,

comeríamos gente com seu sangue.

Minha falta de coragem de matar uma galinha
e no entanto comê-la morta
me confunde, espanta-me,
mas aceito.
A nossa vida é truculenta:
Nasce-se com sangue
e com sangue corta-se a união
que é o cordão umbilical.
E quantos morrem com sangue.
É preciso acreditar no sangue
como parte de nossa vida.
A truculência.
É amor também.

Clarice Lispector



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