sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012
Improviso do mal da América
Grito imperioso de brancura em mim...
Éh coisa de minha terra, passados e formas de agora,
Éh ritmos de síncopa e cheiros lentos de sertão,
Varando contracorrente o mato impenetrável do meu ser...
Não me completam mais que um balanço de tango,
Que uma reza de indiano no templo de pedra,
Que a façanho do chin comunista guerreando,
Que prantina de piá, encastoado de neve, filho de lapão.
São ecos. Mesmos ecos com a mesma insistência filtrada
Que ritmos de síncopa e cheiro do mato meu.
Me sinto branco, fatalizadamente um ser de mundos que nunca vi.
Campeio na vida a jacumã que mude a direção destas igaras fatigadas
E faça tudo ir indo de rodada mansamente
Ao mesmo rolar de rio das aspirações e das pesquisas...
Não acho nada, quase nada, e meus ouvidos vão escutar amorosos
Outras vozes de outras falas de outras raças, mais formação, mais forçura.
Me sinto branco na curiosidade imperiosa de ser.
Lá fora o corpo de São Paulo escorre vida ao guampasso dos arranhacéus,
E dança na ambição compacta de dilúvios de penetras
Vão chegando italianos didáticos e nobres;
Vai chegando a falação barbuda de Unamuno
Emigrada pro quarto-de-hóspedes acolhedor da Sulamérica;
Bateladas de húngaros, búlgaros, russos se despejam na cidade...
Trazem vodca na sapiquá de veludo
Detestam caninha, detestam mandioca e pimenta,
Não dançam maxixe, nem dançam catira, nem sabem amar suspirado.
E de noite monótonos reunidos na mansarda, bancando conspiração,
As mulheres fumam feito chaminés sozinhas,
Os homens destilam vícios aldeões na catinga;
E como sempre entre eles tem sempre um que manda sempre em todos,
Tudo calou de sopetão, e no ar amulegado da noite que súa...
- Coro? Onde já se viu agora coro a quatro vozes, minha gente! -
São coros, coros ucranianos batidos ou místicos, Sehnsucht d'além-mar!
Home...Sweet home...Que sejam felizes aqui!
Mas eu não posso me sentir negro nem vermelho!
De certo que essas cores também tecem minha roupa arlequinal,
Mas eu não me sinto negro, mas eu não me sinto vermelho,
Me sinto só branco, relumeando caridade e acolhimento,
Purificado na revolta contra os brancos, as pátrias,
as guerras, as posses, as preguiças e ignorâncias!
Me sinto só branco agora, sem ar neste ar-livre da América!
Me sinto só branco, só branco em minha alma crivada de raças!
Mário de Andrade
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