I
Foi
de repente. Nesse de repente, ele ia indo pelo meio do aterro quando viu um
canteiro de margaridas. Margarida era um negócio comum: ele via sempre
margaridas quando ia para sua indústria, todas as manhãs. Margaridas não o
comoviam, porque não o comoviam levezas. Mas exatamente de repente, ele mandou
o chofer estacionar e ficou um pouco irritado com a confusão de carros às suas
costas. O motorista precisou parar um pouco adiante, e ele teve que caminhar um
bom pedaço de asfalto para chegar perto do canteiro. Estavam ali, independentes
dele ou de qualquer outra pessoa que gostasse ou não delas: aquelas coisas
vagamente redondas, de pétalas compridas e brancas agrupadas em torno dum
centro amarelo, granuloso. Margaridas. Apanhou uma e colocou-a no bolso do
paletó.
Diga-se
em seu favor que, até esse momento, não premeditara absolutamente nada. Levou a
margarida no bolso, esqueceu dela, subiu pelo elevador, cumprimentou as
secretárias, trancou-se em sua sala. Como todos os dias, tentou fazer todas as
coisas que todos os dias fazia. Não conseguiu. Tomou café, acendeu dois
cigarros, esqueceu um no cinzeiro do lado direito, outro no cinzeiro do lado
esquerdo, acendeu um terceiro, despediu três funcionários e passou uma
descompostura na secretária. Foi só ao meio-dia que lembrou da margarida, no
bolso do paletó. Estava meio informe e desfolhada, mas era ainda uma margarida.
Sem saber exatamente por que, ficou pensando em algumas notícias que havia lido
dias antes: o índice de suicídios nos países superdesenvolvidos, o asfalto
invadindo as áreas verdes, a solidão, a dor, a poluição, a loucura e aquelas coisas
sujas, perigosas e coloridas a que chamavam jovens. De repente, a luz. Brotou.
Deu um grito:
—É
isso!
Chamou
imediatamente um dos redatores para bolar um slogan e esqueceu de almoçar e
telefonou para suas plantações e mandou que preparassem a terra para novo
plantio e ordenou a um de seus braços-direitos que comprasse todos os pacotes
de sementes encontráveis no mercado depois achou melhor importá-las dos mais
variados tamanhos cores e feitios depois voltou atrás e achou melhor
especializar-se justamente na mais banal de todas aquela vagamente redonda de
pétalas brancas e miolo granuloso e conseguiu organizar em poucos minutos toda
uma equipe altamente especializada e contratou novos funcionários e demitiu
outros e precisou tomar uma bolinha para suportar o tempo todo o tempo todo
tinha consciência da importância do jogo exaustou afundou noite adentro sem
atender aos telefonemas da mulher ao lado da equipe batalhando não podia perder
tempo quase à meia-noite tudo estava resolvido e a campanha seria lançada no
dia seguinte não podia perder tempo comprou duas ou três gráficas para imprimir
os cartazes e mandou as fábricas de latas acelerar sua produção precisava de
milhões de unidades dentro de quinze dias prazo máximo porque não podia perder
tempo e tudo pronto voltou pelo meio do aterro as margaridas fantasmagóricas
reluzindo em branco entre o verde do aterro a cabeça quase estourando de prazer
e a sensação nítida clara definida de não ter perdido tempo. Dormiu.
II
No
dia seguinte, acordou mais cedo do que de costume e mandou o chofer rodar pela
cidade. Os cartazes. As ruas cheias de cartazes, as pessoas meio espantadas,
desceu, misturou-se com o povo, ouviu os comentários, olhou, olhou. Os
cartazes. O fundo negro com uma margarida branca, redonda e amarela, destacada,
nítida. Na parte inferior, o slogan:
Ponha
uma margarida na sua fossa.
Sorriu.
Ninguém entendia direito. Dúvidas. Suposições: um filme underground, uma
campanha antitóxicos, um livro de denúncia. Ninguém entendia direito. Mas ele e
sua equipe sabiam. Os jornais e revistas das duas semanas seguintes traziam
textos, fotos, chamadas:
O
índice de poluição dos rios é alarmante.
Não
entre nessa.
Ponha
uma margarida na sua fossa.
Ou
O
asfalto ameaça o homem e as flores.
Cuidado.
Use
uma margarida na sua fossa.
Ou
A
alegria não é difícil.
Fique
atento no seu canto.
Basta
uma margarida na sua fossa.
Jingles.
Programas de televisão. Horário nobre. Ibope. Procura desvairada de margaridas
pelas praças e jardins. Não eram encontradas. Tinham desaparecido
misteriosamente dos parques, lojas de flores, jardins particulares. Todos
queriam margaridas. E não havia margaridas. As fossas aumentaram
consideravelmente. O índice de alcoolismo subiu. A procura de drogas também. As
chamadas continuavam.
O
índice de suicídios no país aumentou em 50%.
Mantenha
distância.
Há
uma margarida na porta principal.
Contratos.
Compositores. Cibernéticos. Informáticos. Escritores. Artistas plásticos.
Comunicadores de massa. Cineastas. Rios de dinheiro corriam pelas folhas de
pagamento. Ele sorria. Indo ou vindo pelo meio do aterro, mandava o motorista
ligar o rádio e ficava ouvindo notícias sobre o surto de margaridite que
assolava o país. Todos continuavam sem entender nada. Mas quinze dias depois: a
explosão.
As
prateleiras dos supermercados amanheceram repletas do novo produto. As pessoas
faziam filas na caixa, nas portas, nas ruas. Compravam, compravam. As aulas
foram suspensas. As repartições fecharam. O comércio fechou. Apenas os
supermercados funcionavam sem parar. Consumiam. Consumavam. O novo produto:
margaridas
cuidadosamente acondicionadas em latas, delicadas latas acrílicas. Margaridas
gordas, saudáveis, coradas em sua profunda palidez. Mil utilidades: decoração,
alimentação, vestuário, erotismo. Sucesso absoluto. Ele sorria. A barriga
aumentava. Indo e vindo pelo aterro, mergulhado em verde, manhã e noite — ele
sorria. Sociólogos do mundo inteiro vieram examinar de perto o fenômeno.
Líderes feministas. Teóricos marxistas. Porcos chauvinistas. Artistas
arrivistas. Milionários em férias. A margarida nacional foi aclamada como a
melhor do mundo: mais uma vez a Europa se curvou ante o Brasil.
Em
seguida começaram as negociações para exportação: a indústria expandiu-se de
maneira incrível. Todos queriam trabalhar com margaridas enlatadas. Ele
pontificava. Desquitou-se da mulher para ter casos rumorosos com atrizes em
evidência. Conferências. Debates. Entrevistas. Tornou-se uma espécie de guru
tropical. Comentava-se em rodinhas esotéricas que seus guias seriam remotos
mercadores fenícios. Ele havia tornado feliz o seu país. Ele se sentia bom e
útil e declarou uma vez na televisão que se julgava um homem realizado por
poder dar amor aos outros. Declarou textualmente que o amor era o seu país.
Comentou-se que estaria na sexta ou sétima grandeza. Místicos célebres
escreviam ensaios onde o chamavam de mutante, iniciado, profeta da Era de
Aquarius. Ele sorria. Indo e vindo. Até que um dia, abrindo uma revista, viu o
anúncio:
Margarida
já era, amizade.
Saca
esta transa:
O
barato é avenca.
III
Não
demorou muito para que tudo desmoronasse. A margarida foi desmoralizada.
Tripudiada. Desprestigiada. Não houve grandes problemas. Para ele, pelo menos.
Mesmo os empregados, tiveram apenas o trabalho de mudar de firma, passando-se
para a concorrente. O quente era a avenca. Ele já havia assegurado o seu futuro
— comprara sítios, apartamentos, fazendas, tinha gordos depósitos bancários na
Suíça. Arrasou com napalm as plantações deficitárias e precisou liquidar todo o
estoque do produto a preços baixíssimos. Como ninguém comprasse, retirou-o de
circulação e incinerou-o.
Só
depois da incineração total é que lembrou que havia comprado todas as sementes
de todas as margaridas. E que margarida era uma flor extinta. Foi no mesmo dia
que pegou a mania de caminhar a pé pelo aterro, as mãos cruzadas atrás, rugas
na testa. Uma manhã, bem de repente, uma manhã bem cedo, tão de repente quanto
aquela outra, divisou um vulto em meio ao verde. O vulto veio se aproximando. Quando
chegou bem perto, ele reconheceu sua ex-esposa.
Ele
perguntou:
–
Procura margaridas?
Ela
respondeu:
–
Já era.
Ele
perguntou:
–
Avencas?
Ela
respondeu:
–
Falou.
Caio
Fernando Abreu
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