É noite. Sinto que é
noite
não
porque a sombra descesse
(bem
me importa a face negra)
mas
porque dentro de mim,
no
fundo de mim, o grito
se
calou, fez-se desânimo.
Sinto
que nós somos noite,
que
palpitamos no escuro
e
em noite nos dissolvemos.
Sinto
que é noite no vento,
noite
nas águas, na pedra.
E
que adianta uma lâmpada?
E
que adianta uma voz?
É
noite no meu amigo.
É
noite no submarino.
É
noite na roça grande.
É
noite, não é morte, é noite
de
sono espesso e sem praia.
Não
é dor, nem paz, é noite,
é
perfeitamente a noite.
Mas
salve, olhar de alegria!
E
salve, dia que surge!
Os
corpos saltam do sono,
o
mundo se recompõe.
Que
gozo na bicicleta!
Existir:
seja como for.
A
fraterna entrega do pão.
Amar:
mesmo nas canções.
De
novo andar: as distâncias,
as
cores, posse das ruas.
Tudo
que à noite perdemos
se
nos confia outra vez.
Obrigado,
coisas fiéis!
Saber
que ainda há florestas,
sinos,
palavras; que a terra
prossegue
seu giro, e o tempo
não
murchou; não nos diluímos.
Chupar
o gosto do dia!
Clara
manhã, obrigado,
o
essencial é viver!
Carlos
Drummond de Andrade
"A
Rosa do Povo"
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