Tenho
um dragão que mora comigo.
Não,
isso não é verdade.
Não
tenho nenhum dragão. E, ainda que tivesse, ele não moraria comigo nem com
ninguém. Para os dragões, nada mais inconcebível que dividir seu espaço - seja
com outro dragão, seja com uma pessoa banal feito eu. Ou invulgar, como imagino
que os outros devam ser. Eles são solitários, os dragões. Quase tão solitários
quanto eu me encontrei, sozinho neste apartamento, depois de sua partida. Digo
quase porque, durante aquele tempo em que ele esteve comigo, alimentei a ilusão
de que meu isolamento para sempre tinha acabado. E digo ilusão porque, outro
dia, numa dessas manhãs áridas da ausência dele, felizmente cada vez menos
freqüentes (a aridez, não a ausência), pensei assim: Os homens precisam da
ilusão do amor da mesma forma que precisam da ilusão de Deus. Da ilusão do amor
para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta; da ilusão de Deus,
para não se perderem no caos da desordem sem nexo.
Isso
me pareceu gradiloqüente e sábio como uma idéia que não fosse minha, tão
estúpidos costumam ser meus pensamentos. E tomei nota rapidamente no guardanapo
do bar onde estava. Escrevi também mais alguma coisa que ficou manchada pelo
café. Até hoje não consigo decifrá-la. Ou tenho medo da minha - felizmente
indecifrável - lucidez daquele dia.
Estou
me confundindo, estou me dispersando.
O
guardanapo, a frase, a mancha, o medo - isso deve vir mais tarde. Todas essas
coisas de que falo agora - as particularidades dos dragões, a banalidade das
pessoas como eu -, só descobri depois. Aos poucos, na ausência dele, enquanto
tentava compreendê-lo. Cada vez menos para que minha compreensão fosse
sedutora, e cada vez mais para que essa compreensão ajudasse a mim mesmo a. Não
sei dizer. Quando penso desse jeito, enumero proposições como: a ser uma pessoa
menos banal, a ser mais forte, mais seguro, mais sereno, mais feliz, a navegar
com um mínimo de dor. Essas coisas todas que decidimos fazer ou nos tornar
quando algo que supúnhamos grande acaba, e não há nada a ser feito a não ser
continuar vivendo.
Então,
que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o
sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol
bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas
de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar
sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante.
Mas,
se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder.
Tudo é tão vago como se não fosse nada.
Ninguém
perguntará coisa alguma, penso. Depois continuo a contar para mim mesmo, como
se fosse ao mesmo tempo o velho que conta e a criança que escuta, sentado no
colo de mim. Foi essa a imagem que me veio hoje pela manhã quando, ao abrir a
janela, decidi que não suportaria passar mais um dia sem contar esta história
de dragões. Consegui evitá-la até o meio da tarde. Dói, um pouco. Não mais uma
ferida recente, apenas um pequeno espinho de rosa, coisa assim, que você tenta
arrancar da palma da mão com a ponta de uma agulha. Mas, se você não consegue
extirpá-lo, o pequeno espinho pode deixar de ser uma pequena dor para se
transformar numa grande chaga.
Assim,
agora, estou aqui. Ponta fina de agulha equilibrada entre os dedos da mão
direita, pairando sobre a palma aberta da mão esquerda. Algumas anotações em
volta, tomadas há muito tempo, o guardanapo de papel do bar, com aquelas
palavras sábias que não parecem minhas e aquelas outras, manchadas, que não
consigo ou não quero ou finjo não poder decifrar.
Ainda
não comecei.
Queria
tanto saber dizer Era uma vez. Ainda não consigo.
Mas
preciso começar de alguma forma. E esta, enfim, sem começar propriamente, assim
confuso, disperso, monocórdio, me parece um jeito tão bom ou mau quanto
qualquer outro de começar uma história. Principalmente se for uma história de
dragões.
Gosto
de dizer tenho um dragão que mora comigo, embora não seja verdade. Como eu
dizia, um dragão jamais pertence a, nem mora com alguém. Seja uma pessoa banal
igual a mim, seja unicórnio, salamandra, harpia, elfo, hamadríade, sereia ou
ogro. Duvido que um dragão conviva melhor com esses seres mitológicos, mais
semelhantes à natureza dele, do que com um ser humano. Não que sejam
insociáveis. Pelo contrário, às vezes um dragão sabe ser gentil e submisso como
uma gueixa. Apenas, eles não dividem seus hábitos.
Ninguém
é capaz de compreender um dragão. Eles jamais revelam o que sentem. Quem
poderia compreender, por exemplo, que logo ao despertar (e isso pode acontecer
em qualquer horário, às três ou às onze da noite, já que o dia e a noite deles
acontecem para dentro, mas é mais previsível entre sete e nove da manhã, pois
essa é a hora dos dragões) sempre batem a cauda três vezes, como se tivessem
furiosos, soltando fogo pelas ventas e carbonizando qualquer coisa próxima num
raio de mais de cinco metros? Hoje, pondero: talvez seja essa a sua maneira
desajeitada de dizer, como costumo dizer agora, ao despertar - que seja doce.
Mas
no tempo em que vivia comigo, eu tentava - digamos - adaptá-lo às
circunstâncias. Dizia por favor, tente compreender, querido, os vizinho banais
do andar de baixo já reclamaram da sua cauda batendo no chão ontem às quatro da
madrugada. O bebê acordou, disseram, não deixou ninguém mais dormir. Além
disso, quando você desperta na sala, as plantas ficam todas queimadas pelo seu
fogo. E, quanto você desperta no quarto, aquela pilha de livros vira cinzas na
minha cabeceira.
Ele
não prometia corrigir-se. E eu sei muito bem como tudo isso parece ridículo. Um
dragão nunca acha que está errado. Na verdade, jamais está. Tudo que faz, e que
pode parecer perigoso, excêntrico ou no mínimo mal-educado para um humano igual
a mim, é apenas parte dessa estranha natureza dos dragões. Na manhã, na tarde
ou na noite seguintes, quanto ele despertasse outra vez, novamente os vizinhos
reclamariam e as prímulas amarelas e as begônias roxas e verdes, e Kafka,
Salinger, Pessoa, Clarice e Borges a cada dia ficariam mais esturricados. Até
que, naquele apartamento, restássemos eu e ele entre as cinzas. Cinzas são como
sedas para um dragão, nunca para um humano, porque a nós lembra destruição e
morte, não prazer. Eles trafegam impunes, deliciados, no limiar entre essa zona
oculta e a mais mundana. O que não podemos compreender, ou pelo menos aceitar.
Além
de tudo: eu não o via. Os dragões são invisíveis, você sabe. Sabe? Eu não
sabia. Isso é tão lento, tão delicado de contar - você ainda tem paciência?
Certo, muito lógico você querer saber como, afinal, eu tinha tanta certeza da
existência dele, se afirmo que não o via. Caso você dissesse isso, ele riria.
Se, como os homens e as hienas, os dragões tivessem o dom ambíguo do riso. Você
o acharia talvez irônico, mas ele estaria impassível quanto perguntasse assim:
mas então você só acredita naquilo que vê? Se você dissesse sim, ele falaria em
unicórnios, salamandras, harpias, hamadríades, sereias e ogros. Talvez em fadas
também, orixás quem sabe? Ou átomos, buracos negros, anãs brancas, quasars e
protozoários. E diria, com aquele ar levemente pedante: "Quem só acredita
no visível tem um mundo muito pequeno. Os dragões não cabem nesses pequenos
mundos de paredes invioláveis para o que não é visível".
Ele
gostava tanto dessas palavras que começam com in - invisível, inviolável,
incompreensível -, que querem dizer o contrário do que deveriam. Ele próprio
era inteiro o oposto do que deveria ser. A tal ponto que, quando o percebia
intratável, para usar uma palavra que ele gostaria, suspeitava-o ao contrário:
molhado de carinho. Pensava às vezes em tratá-lo dessa forma, pelo avesso, para
que fôssemos mais felizes juntos. Nunca me atrevi. E, agora que se foi, é tarde
demais para tentar requintadas harmonias.
Ele
cheirava a hortelã e alecrim. Eu acreditava na sua existência por esse cheiro
verde de ervas esmagadas dentro das duas palmas das mãos. Havia outros sinais,
outros augúrios. Mas quero me deter um pouco nestes, nos cheiros, antes de continuar.
Não acredite se alguém, mesmo alguém que não tenha um mundo pequeno, disser que
os dragões cheiram a cavalos depois de uma corrida, ou a cachorros das ruas
depois da chuva. A quartos fechados, mofo, frutas podres, peixe morto e maresia
- nunca foi esse o cheiro dos dragões.
A
hortelã e alecrim, eles cheiram. Quando chegava, o apartamento inteiro ficava
impregnado desse perfume. Até os vizinhos, aqueles do andar de baixo,
perguntavam se eu andava usando incenso ou defumação. Bem, a mulher perguntava.
Ela tinha uns olhos azuis inocentes. O marido não dizia nada, sequer me
cumprimentava. Acho que pensava que era uma dessas ervas de índio que as
pessoas costumam fumar quando moram em apartamentos, ouvindo música muito alto.
A mulher dizia que o bebê dormia melhor quando esse cheiro começava a descer
pelas escadas, mais forte de tardezinha, e que o bebê sorria, parecendo sonhar.
Sem dizer nada, eu sabia que o bebê sonhava com dragões, unicórnios ou
salamandras, esse era um jeito do seu mundo ir-se tornando aos poucos mais
largo. Mas os bebês costumam esquecer dessas coisas quanto deixam de ser bebês,
embora possuam a estranha facilidade de ver dragões - coisa que só os mundos
muito largos conseguem.
Eu
aprendi o jeito de perceber quando o dragão estava a meu lado. Certa vez,
descemos juntos pelo elevador com aquela mulher de olhos-azuis-inocentes e seu
bebê, que também tinha olhos-azuis-inocentes. O bebê olhou o tempo todo para
onde estava o dragão. Os dragões param sempre do lado esquerdo das pessoas, para
conversar direto com o coração. O ar a meu lado ficou leve, de uma coloração
vagamente púrpura. Sinal que ele estava feliz. Ele, o dragão, e também o bebê,
e eu, e a mulher, e a japonesa que subiu no sexto andar, e um rapaz de barba no
terceiro. Sorríamos suaves, meio tolos, descendo juntos pelo elevador numa
tarde que lembro de abril - esse é o mês dos dragões - dentro daquele clima de
eternidade fluida que apenas os dragões, mas só às vezes, sabem transmitir.
Por
situações como essa, eu o amava. E o amo ainda, quem sabe mesmo agora, quem
sabe mesmo sem saber direito o significado exato dessa palavra seca - amor. Se
não o tempo todo, pelo menos quanto lembro de momentos assim. Infelizmente,
raros. A aspereza e avesso parecem ser mais constantes na natureza dos dragões
do que a leveza e o direito. Mas queria falar de antes do cheiro. Havia outros
sinais, já disse. Vagos, todos eles.
Nos
dias que antecediam a sua chegada, eu acordava no meio da noite, o coração
disparado. As palmas das mãos suavam frio. Sem saber porque, nas manhãs
seguintes, compulsivamente eu começava a comprar flores, limpar a casa, ir ao
supermercado e à feira para encher o apartamento de rosas e palmas e morangos
daqueles bem gordos e cachos de uvas reluzentes e berinjelas luzidias (os
dragões, descobri depois, adoram contemplar berinjelas) que eu mesmo não
conseguia comer. Arrumava em pratos, pelos cantos, com flores e velas e fitas,
para que os espaços ficassem mais bonito.
Como
uma fome, me dava. Mas uma fome de ver, não de comer. Sentava na sala toda
arrumada, tapete escovado, cortinas lavadas, cestas de frutas, vasos de flores
- acendia um cigarro e ficava mastigando com os olhos a beleza das coisas
limpas, ordenadas, sem conseguir comer nada com a boca, faminto de ver. À
medida que a casa ficava mais bonita, eu me tornava cada vez mais feio, mais
magro, olheiras fundas, faces encovadas. Porque não conseguia dormir nem comer,
à espera dele. Agora, agora vou ser feliz, pensava o tempo todo numa certeza
histérica. Até que aquele cheiro de alecrim, de hortelã, começasse a ficar mais
forte, para então, um dia, escorregar que nem brisa por baixo da porta e se
instalar devagarzinho no corredor de entrada, no sofá da sala, no banheiro, na
minha cama. Ele tinha chegado.
Esses
ritmos, só descobri aos poucos. Mesmo o cheiro de hortelã e alecrim, descobri
que era exatamente esse quando encontrei certas ervas numa barraca de feira.
Meu coração disparou, imaginei que ele estivesse por perto. Fui seguindo o
cheiro, até me curvar sobre o tabuleiro para perceber: eram dois maços verdes,
a hortelã de folhinhas miúdas, o alecrim de hastes compridas com folhas que
pareciam espinhos, mas não feriam. Pergunte o nome, o homem disse, eu não
esqueci. Por pura vertigem, nos dias seguintes repetia quanto sentia saudade:
alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim.
Antes,
antes ainda, o pressentimento de sua visita trazia unicamente ansiedade,
taquicardias, aflição, unhas roídas. Não era bom. Eu não conseguia trabalhar,
ira ao cinema, ler ou afundar em qualquer outra dessas ocupações banais que as
pessoas como eu têm quando vivem. Só conseguia pensar em coisas bonitas para a
casa, e em ficar bonito eu mesmo para encontrá-lo. A ansiedade era tanta que eu
enfeiava, à medida que os dias passavam. E, quando ele enfim chegava, eu nunca
tinha estado tão feio. Os dragões não perdoam a feiúra. Menos ainda a daqueles
que honram com sua rara visita.
Depois
que ele vinha, o bonito da casa contrastando com o feio do meu corpo, tudo aos
poucos começava a desabar. Feito dor, não alegria. Agora agora agora vou ser
feliz, eu repetia: agora agora agora. E forçava os olhos pelos cantos de prata
esverdeadas, luz fugidia, a ponta em seta de sua cauda pela fresta de alguma
porta ou fumaça de suas narinas, sempre mau, e a fumaça, negra. Naqueles dias,
enlouquecia cada vez mais, querendo agora já urgente ser feliz. Percebendo
minha ânsia, ele tornava-se cada vez mais remoto. Ausentava-se, retirava-se,
fingia partir. Rarefazia seu cheiro de ervas até que não passasse de uma
suspeita verde no ar. Eu respirava mais fundo, perdia o fôlego no esforço de
percebê-lo, dias após dia, enquanto flores e frutas apodreciam nos vasos, nos
cestos, nos cantos. Aquelas mosquinhas negras miúdas esvoaçavam em volta delas,
agourentas.
Tudo
apodrecia mais e mais, sem que eu percebesse, doído do impossível que era
tê-lo. Atento somente à minha dor, que apodrecia também, cheirava mal. Então
algum dos vizinhos batia à porta para saber se eu tinha morrido e sim, eu
queria dizer, estou apodrecendo lentamente, cheirando mal como as pessoas
banais ou não cheiram quando morrem, à espera de uma felicidade que não chega
nunca. Ele não compreenderia. Eu não compreendia, naqueles dias - você
compreende?
Os
dragões, já disse, não suportam a feiúra. Ele partia quando aquele cheiro de
frutas e flores e, pior que tudo, de emoções apodrecidas tornava-se
insuportável. Igual e confundido ao cheiro da minha felicidade que, desta e
mais uma vez, ele não trouxera. Dormindo ou acordado, eu recebia sua partida
como um súbito soco no peito. Então olhava para cima, para os lados, à procura
de Deus ou qualquer coisa assim - hamadríades, arcanjos, nuvens radioativas,
demônios que fossem. Nunca os via. Nunca via nada além das paredes de repente
tão vazias sem ele.
Só
quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois
que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca mais reflexos esverdeados pelos
cantos, nem perfume de ervas pelo ar, nunca mais fumaças coloridas ou formas
como serpentes espreitando pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste:
nunca mais nenhuma vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa
felicidade nos deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e
aquela fome incapaz de engolir qualquer coisa. A não ser o belo, que é de ver,
não de mastigar, e por isso mesmo também uma forma de desconforto. No turvo
seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão, mesmo voltando a comer e a
dormir normalmente, como fazem as pessoas banais, você não sabe mais se não
seria preferível aquele pântano de antes, cheio de possibilidades - que não
aconteciam, mas que importa? - a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é
nada.
Hoje,
acho que sei. Um dragão vem e parte para que seu mundo cresça? Pergunto -
porque não estou certo - coisas talvez um tanto primárias, como: um dragão vem
e parte para que você aprenda a dor de não tê-lo, depois de ter alimentado a
ilusão de possuí-lo? E para, quem sabe, que os humanos aprendam a forma de
retê-lo, se ele um dia voltar?
Não,
não é assim. Isso não é verdade.
Os
dragões não permanecem. Os dragões são apenas a anunciação de si próprios. Eles
se ensaiam eternamente, jamais estréiam. As cortinas não chegam a se abrir para
que entrem em cena. Eles se esboçam e se esfumam no ar, não se definem. O
aplauso seria insuportável para eles: a confirmação de que sua inadequação é
compreendida e aceita e admirada, e portanto - pelo avesso igual ao direito -
incompreendida, rejeitada, desprezada. Os dragões não querem ser aceitos. Eles
fogem do paraíso, esse paraíso que nós, as pessoas banais, inventamos - como eu
inventava uma beleza de artifícios para esperá-lo e prendê-lo para sempre junto
a mim. Os dragões não conhecem o paraíso, onde tudo acontece perfeito e nada
dói nem cintila ou ofega, numa eterna monotonia de pacífica falsidade. Seu
paraíso é o conflito, nunca a harmonia.
Quando
volto apensar nele, nestas noites em que dei para me debruçar à janela
procurando luzes móveis pelo céu, gosto de imaginá-lo voando com suas grandes
asas douradas, solto no espaço, em direção a todos os lugares que é lugar
nenhum. Essa é sua natureza mais sutil, avessa às prisões paradisíacas que
idiotamente eu preparava com armadilhas de flores e frutas e fitas, quando ele
vinha. Paraísos artificiais que apodreciam aos poucos, paraíso de eu mesmo -
tão banal e sedento - a tolerar todas as suas extravagâncias, o que devia lhe
soar ridículo, patético e mesquinho. Agora apenas deslizo, sem excessivas
aflições de ser feliz.
As
manhãs são boas para acordar dentro delas, beber café, espiar o tempo. Os
objetos são bons de olhar para eles, sem muitos sustos, porque são o que são e
também nos olham, com olhos que nada pensam. Desde que o mandei embora, para
que eu pudesse enfim aprender a grande desilusão do paraíso, é assim que sinto:
quase sem sentir.
Resta
esta história que conto, você ainda está me ouvindo? Anotações soltas sobre a
mesa, cinzeiros cheios, copos vazios e este guardanapo de papel onde anotei
frases aparentemente sábias sobre o amor e Deus, com uma frase que tenho medo
de decifrar e talvez, afinal, diga apenas qualquer coisa simples feito: nada
disso existe.
Nada,
nada disso existe.
Então
quase vomito e choro e sangro quando penso assim. Mas respiro fundo, esfrego as
palmas das mãos, gero energia em mim. Para manter-me vivo, saio à procura de
ilusões como o cheiro das ervas ou reflexos esverdeados de escamas pelo
apartamento e, ao encontrá-los, mesmo apenas na mente, tornar-me então outra
vez capaz de afirmar, como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora
comigo. E, desse jeito, começar uma nova história que, desta vez sim, seria
totalmente verdadeira, mesmo sendo completamente mentira. Fico cansado do amor
que sinto, e num enorme esforço que aos poucos se transforma numa espécie de
modesta alegria, tarde da noite, sozinho neste apartamento no meio de uma
cidade escassa de dragões, repito e repito este meu confuso aprendizado para a
criança-eu-mesmo sentada aflita e com frio nos joelhos do sereno
velho-eu-mesmo:
-
Dorme, só existe o sonho. Dorme, meu filho. Que seja doce.
Não,
isso também não é verdade.
Caio
Fernando Abreu
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