O primeiro manifesto do
Mangue, na íntegra e em sua versão original de 1992.
Mangue,
o conceito.
Estuário.
Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens
se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais
inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a
água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais
produtivos do mundo.
Estima-se
que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados
estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova
e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo
menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem do alagadiço
costeiro.
Não
é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar
marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa,
para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e
riqueza.
Manguetown,
a cidade
A
planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios.
Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade *maurícia* passou
desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de
seus manguezais.
Em
contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de *progresso*, que
elevou a cidade ao posto de *metrópole* do Nordeste, não tardou a revelar sua
fragilidade.
Bastaram
pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de
esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos
trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada a permanência do mito da
*metrópole* só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos
urbano.
Mangue,
a cena
Emergência!
Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para
saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo
as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma
cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que
fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como
devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples!
Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de
fertilidade nas veias do Recife.
Em
meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um
núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um
*circuito energético*, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a
rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena
parabólica enfiada na lama.
Hoje,
Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da
modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões),
moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem,
música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e
todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da
consciência.
Bastaram
poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a
se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou
uma cena musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de
rádio, desfiles de moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as
artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da
Manguetown.
QUANTO
VALE UMA VIDA (manifesto)
Fred Zero Quatro
I
- LONGA VIDA AO GROOVE!
Os
alquimistas estão chorando. A indignação ruidosa de Lúcio Maia com a ferocidade
carniceira da imprensa nos faz lembrar que nem tudo tem que ser movido a
cinismo e oportunismo no - cada vez mais - cínico e vulgar circuito pop.
Antes
de mais nada, salve Lúcio, Jorge, Dengue, Gilmar, Toca, Gira e Pupilo. Salve
Paulo André e longa vida ao Nação Zumbi, com seu groove imbatível, mix
epidêmico e urgente de química e magia que cedo ou tarde vai varrer o mundo! A
primeira vez que vimos Chico juntando a Loustal com o Lamento Negro (o embrião
do que seria a Nação Zumbi, ainda no início de 91), comentamos arrepiados, eu e
Renato L.:"não importa que estejamos no fim do mundo e sem dinheiro no
bolso; não tem errada, não há nada no mundo que possa deter esse som!" Na
nossa ficha, constava a produção de vários programas de Rock na cidade, onde
nos esforçávamos para mostrar sons novos e interessantes de todos os cantos do
mundo. E não havia dúvida de que naquele momento estávamos diante de algo
absurdamente novo e irresistível. Começamos imediatamente a viajar num conceito
capaz de colocar o Recife no mapa. É claro que houve momentos nos últimos anos
em que chegamos a pensar que talvez tivéssemos ajudado a criar uma espécie de
monstro incontrolável. Mas hoje sabemos que agimos bem, não poderíamos agir de
outro modo.
-
E agora, mangueboys?
Chico
era referência e inspiração para muita gente, talvez para toda uma geração de
recifenses. E a perda para a Nação Zumbi é irreparável em termos de carisma,
energia vocal, gestual, etc. Ninguém questiona isso. Mas o que muita gente
esquece é que a fórmula criada por Chico tinha uma base muito sólida em termos
de cozinha, acompanhamento, groove. A maioria das pessoas desconhece alguns
fatos. Quando eu conheci Francisco França, ele era o lado mais extrovertido da
mais nova dupla do barulho da cidade. Chico e Jorge eram inseparáveis como unha
e carne, egressos da "Legião Hip Hop", que reunia no final dos anos
80, alguns dos melhores dançarinos e djs que o Recife já conheceu ( alguém aí
já viu Jorge Du Peixe dançando "street"? A galera que hoje em dia
ensina funk nas academias de dança não daria nem pro caldo...).
Jorge
sempre foi um pouco mais tímido, mas não menos engraçado, e os dois se
completavam em termos de gosto, idéias, visão e criatividade. Chico sempre teve
mais iniciativa e era, como todos sabemos, um letrista formidável. Mas alguém
aí se lembra quem é o autor da letra do clássico "Maracatu de Tiro
Certeiro"? Isso mesmo, Jorge Du Peixe...
Quanto
a Lúcio Maia, qualquer um que acompanhe a Guitar Player, sabe que é cada vez
maior o número de pessoas que o consideram um dos mais talentosos e ecléticos
guitarristas brasileiros, uma verdadeira revelação dos últimos tempos. Dengue,
então, é aquele baixista contido, discreto, mas super-eficiente. Desde os
tempos do Loustal, ele sempre conseguiu encaixar a levada perfeita para o
estilo fragmentado dos versos de Chico. E quanto aos tambores e à bateria, nem
é preciso comentar. Não se via, no rock and roll, uma engrenagem tão potente e
envenenada desde a morte de John Bonham.
Quando
toda a crítica brasileira caiu de quatro sob o impacto avassalador do "Da
Lama ao Caos", houve no Recife quem apostasse que Chico despontaria em
carreira solo já no segundo disco. Argumentavam que, por um lado Chico tinha
luz própria de sobra e por outro a fórmula do Nação Zumbi não renderia mais
nada interessante, pois já teria se esgotado. Eu e Renato torcemos para que
acontecesse o contrário, para que Chico não se rendesse à vaidade pessoal e
injetasse todo gás possível no fortalecimento da banda. Ele não decepcionou,
mostrou que não era nem um pouco ingênuo ou deslumbrado e que sabia muito bem
do que precisava para se manter no topo. O resultado foi o brilhante
"Afrociberdelia", um trabalho coletivo - com Lúcio mais ativo do que
nunca do que nunca na produção.
Portanto,
se existe uma banda que tem total autoridade e potencial para ocupar
condignamente o lugar que o inesquecível Chico Science deixou vago no topo,
essa banda é sem dúvida a Nação Zumbi. Por sinal, o próprio Chico nem cogitava
em dar por esgotado o formato da banda, tanto que já planejava entrar com os
brothers no estúdio ainda este ano para gravar o terceiro disco. LONGA VIDA AO GROOVE!!!
II- BUSCANDO RESPOSTAS
"Something is happening here, but you don't know
what it is. Do you, Mr Jones?" Essa frase de Bob Dylan me vem à mente
sempre que eu penso no tom de alguns comentários publicados nos maiores jornais
do país a respeito da morte de Chico. Talvez com intenção de pintar o fato com
as cores mais chocantes, expurgando, assim, a dor e a revolta da perda, as
matérias acabavam invariavelmente emitindo um tom derrotista ou até desolador.
Se
o caso é especular sobre o que pode acontecer daqui em diante, o mais oportuno
seria tentar identificar na história do Pop, fatos ou situações semelhantes que
possam servir de exemplos. Em se tratando de movimentos de cultura Pop; gerados
em focos isolados; situados na periferia do mercado; e com reconhecimento
mundial, os fenômenos mais correlatos ao Mangue Beat que se tem notícia - ainda
que os estágios de desenvolvimentos sejam distintos - são a Jamaica pós-Bob
Marley e Salvador pós-Tropicalismo.
Sobre
Salvador, minha experiência como mangueboy me diz que o Tropicalismo não surgiu
lá por acaso. Nada no mundo poderia ter impedido o caldo cultural da cidade de
gerar posteriormente (e na sequência) os Novos Baianos, A Cor do Som, os trios
elétricos, a Axé Music, o Samba - Reggae, a Timbalada, etc. Também não foi por
milagre que a Jamaica se tornou berço do Calipso, do Ska, do Reggae, do Dub, do
Raggamuffin e de todas as variantes do Dancehall que hoje, quase 20 anos depois
da morte de Marley, contaminam as paradas de sucesso de todo o mundo.
Esses
dois fenômenos foram condicionados por combinações específicas de fatores
geográficos, econômicos, políticos, sociológicos, antropológicos, enfim, culturais,
cuja história eu não seria capaz de analisar. Mas em se tratando de focos
isolados que a partir de um determinado estímulo geram uma reação em cadeia
capaz de contaminar toda a história futura de uma comunidade, meu depoimento
talvez possa ser útil.
III-
UMA VISITA MUITO ESPECIAL
Lembro-me
muito bem do nervosismo que tomou conta da cidade quando, em 93 (logo após o
primeiro Abril Pro Rock), a diretoria da Sony anunciou que mandaria um
representante ao Recife para contratar Chico Science... Fun! Fun! Zoeira Total!
Diversão a qualquer custo, e a mais barulhenta possível! Esse havia sido o
nosso lema quando, dois anos antes, sentindo o descompasso - o fundo do poço, o
infarto iminente - , resolvêramos tentar de tudo para detonar adrenalina no
coração deprimido da cidade. Depois de vários shows e eventos muito bem
sucedidos, e do manifesto "Caranguejos com Cérebro" ( que
transformou, de uma hora para outra centenas de arruaceiros inocentes em
"mangueboys" militantes ), parecia que a cidade realmente começava a
despertar do coma profundo em que esteve mergulhada desde o início da guerra
dos 80.
Parêntese:
não é exagero. Segundo os levantamentos mensais do DIEESE, Recife conseguiu
manter sem muito esforço a impressionante e isolada posição de campeã nacional
do desemprego e da inflação por nada menos que dez anos seguidos!!! Imaginem o
efeito devastador que uma situação como essa pode provocar na alma de uma
comunidade com mais de 400 anos de história e que só neste século havia gerado
nomes da dimensão de Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, Josué de Castro e João
Cabral de Melo Neto. Para nós, que mal havíamos saído da adolescência só
restavam duas saídas: tentar uma bolsa na Europa ou ganhar as ruas...
Então,
a chegada da Sony representava uma espécie de prêmio coletivo. O significado
simbólico era que finalmente podia estar se abrindo um canal de comunicação
direta com o mercado mundial, como os caranguejos do asfalto haviam almejado em
seu primeiro manifesto. Para todos os agentes e operadores culturais que viam
seu talento e potencial atrofiados pela desmotivação, era o estímulo concreto
que faltava. Afinal, queiram ou não, discos pop lançados por multinacionais
movimentam várias áreas de expressão ao mesmo tempo: moda, fotografia, design,
produção gráfica, vídeos, relações públicas, assessoria, imprensa, marketing,
música, etc.
Daí
em diante, pode-se dizer que teve início um efetivo "renascimento"
recifense. Todo mundo gritou mãos à obra! e partiu para o ataque. As ruas
viraram passarelas de estilistas independentes; bandas pipocaram em cada
esquina; palcos foram improvisados em todos os bares; fitas demo e clipes novos
eram lançados toda semana, e assim por diante, gerando uma verdadeira
cooperativa multimídia autônoma e explosiva, que não parava de crescer e
mobilizar toda a cidade. De headbangers a mauricinhos, de punks a líderes
comunitários, de surfistas a professores acadêmicos, ninguém ficou de fora.
Para se ter uma idéia, a frase " computadores fazem arte, artistas fazem
dinheiro" ( Mundo Livre SA ) virou tema de redação de vestibular de uma
faculdade local.
IV
- MANGUETOWN, 5 ANOS DEPOIS
O
renascimento segue de vento em popa. A noite mais concorrida do último Abril
Pro Rock foi a que reuniu três bandas locais. Mais de cinco mil pessoas pagaram
ingresso e enfrentaram uma chuva intensa para aplaudir e cantar junto com Mundo
Livre SA, Mestre Ambrósio e Chico Science e Nação Zumbi. O festival "Viva
a Música", realizado em setembro passado, reuniu mais de 50 novas bandas.
O disco de estréia da campeã, Dona Margarida Pereira e os Fulanos, está em fase
de gravação. O programa Mangue Beat (Caetés FM 99.1) ocupa há 2 anos os
primeiros lugares de audiência, tocando fitas demo e lançamentos locais, além
de novidades de todos os cantos do planeta. O "Manguetronic", um
programa de rádio idealizado especialmente para a Internet, vem se firmando
como um dos sites mais acessados do Universo on Line. Os últimos cds do Chico
Science e Nação Zumbi e do Mundo Livre SA e a estréia do Mestre Ambrósio
figuraram na lista dos dez melhores do ano da revista Showbizz. Estão em fase
de finalização os aguardados álbuns de estréia das bandas Eddie e Devotos do
Ódio. O Abril pro Rock 97 entrou pela primeira vez no calendário de eventos
oficiais do Estado, ganhando assim uma ampla divulgação nacional e uma
infra-estrutura mais organizada. A estréia em longa-metragem dos cineastas
pernambucanos Lírio Ferreira e Paulo Caldas - o filme "O Baile
Perfumado", cuja trilha é assinada por Chico Science, Siba (do Mestre
Ambrósio) e Zero Quatro - ganhou vários prêmios, entre eles o de melhor filme,
no último Festival de Cinema de Brasília. O estilista Eduardo Ferreira já
recebeu vários prêmios nas últimas edições do Phytoervas Fashion. O Mundo Livre
S.A. acaba de fazer 4 shows e um clipe no México, devendo participar de vários
festivais europeus no segundo semestre...
(Pausa
para respirar)
Temos
como objetivo imediato pressionar a Prefeitura do Recife para tirar do papel e
colocar no ar a rádio Frei Caneca FM, uma emissora sem fins lucrativos cujo orçamento
para 97, ao que parece, já foi aprovado pela Câmara Municipal. Afinal, o único
e mais difícil obstáculo que ainda não superamos foi o das rádios comerciais.
Sabemos que na Jamaica e em Salvador foi preciso o uso até de ações violentas
para pressionar os disc - jóckeis. No estágio atual, não achamos que recursos
sejam necessários. O Popspace não é invulnerável e a história está do nosso
lado.
Quem
acompanhou no Recife as últimas homenagens a Chico, sentiu a força de um
compromisso coletivo. Hoje cada recifense tem no olhar um pouco de guerrilheiro
da Frente Pop de Libertação. E o recado que queremos enviar para o mundo não é
muito diferente daquele que nos mandam as comunidades indígenas de Chiapas- que
têm no subcomandante Marcos o seu porta-voz. VIVA SANDINO! VIVA ZAPATA! VIVA
ZUMBI! A utopia continua...
"-
Quanto vale a vida de um homem, em quanto cada um avalia a sua própria vida, a
troco de quê está disposto a mudá - la? Nós avaliamos muito alto o preço de
nossas vidas. Valem um mundo melhor, nada menos. Homens e mulheres, dispostos a
dar suas vidas, têm direito a pedir tanto quanto valem. Há os que avaliam suas
vidas por uma quantidade de dinheiro, mas nós a avaliamos pelo mundo, esse é o
custo do nosso sangue..." (Subcomandante Marcos)
Ass:
Zero Quatro, com a colaboração de Renato L.
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