domingo, 20 de dezembro de 2009

Uma furtiva lágrima

O mar insensivelmente azul engolindo-o
O sol ardentemente vermelho marcando-o
A terra secamente laranja cortando-o
O ar friamente cinza invadindo-o
O mundo assustadoramente belo
O mundo maravilhosamente estranho
Um muro e a casa do vizinho
O homem bem velhinho que cultivava goiabas
Ali no alto, senhor de tão magnífica paisagem
Sentei-me e chorei


A mulher languidamente sedutora
O irmão estendendo a mão
O pai olhando em silêncio
A mãe falando incessantemente
As pessoas me dizendo e eu nada entendendo
Um muro e a casa do vizinho
O homem bem velhinho que falava com as plantas e insetos
Ali no alto, amando em silêncio
Sentei-me e chorei


A cidade tão incrivelmente iluminada
A movimentada avenida
O estádio lotado

O prédio prateado sem fim de tão alto
As construções mirabolantes na cidade ruidosa
A miséria e a fome ao redor
Um muro e a casa do vizinho
O homem bem velhinho que reparava sua cerca e alimentava o vira-lata
[da rua]
Sentado no muro eu consertava o mundo e chorava


O corpo ardendo em febre
O ouvido doendo de tanto escutar
O nariz conflitadamente entupido
Os músculos irritadamente doloridos
Na pele as marcas da sobrevivência de um ser vivo
Um muro e a casa do vizinho
O homem bem velhinho que cuidava de sua doente esposa
No alto do muro eu inventava medicinas e chorava


Num belo dia de outono

Os passarinhos cantavam timidamente
E o sol acariciava com delicadeza a tez
Nesse dia comumente singelo
Decidi não apenas sentar-me no muro
Queria ficar mais alto, conhecer mais, fazer mais

Foi quando escorreguei
Caí, o joelho sangrou, eu acordei
Estava do outro lado do muro
E o vizinho homem bem velhinho
Ajudou-me a cuidar da ferida
Ele me disse com amor: a gente levanta para cair de novo.
Deu-me um beijo e uma goiaba
Contou-me que sua mulher chamava-se Maria e há anos não mais falava
Contou-me que em idos tempos adorava sentar-se naquele muro e
[sonhar]
Depois me disse com olhar profundo: já sabes o segredo
“Nada é melhor do que sonhar”
Choramos juntos e nos abraçamos.


No dia seguinte
Sentei-me no muro, olhei tudo o que já havia visto antes
Dominei a beleza do mundo
Inventei medicinas
Amei as mais belas mulheres
Liderei os homens na luta por um mundo melhor
Havia uma cicatriz no meu joelho
E, apesar dos olhos tristes
Não chorei, afinal
Era apenas um garoto sentado no alto do muro, sonhando

O vizinho saiu a varanda
Olhou-me com amor
Fiquei de pé e gritei corajoso: o senhor me ajudou a não ter mais medo!
Agora, já posso sonhar sem chorar!

O velhinho entrou rapidamente, pois queria esconder uma lágrima...

(Extraída de PEYON, E. Pequenas Conchinhas. Rio de Janeiro: Papel Virtual Ed., 2004)


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