O mar insensivelmente
azul engolindo-o
O
sol ardentemente vermelho marcando-o
A
terra secamente laranja cortando-o
O
ar friamente cinza invadindo-o
O
mundo assustadoramente belo
O
mundo maravilhosamente estranho
Um
muro e a casa do vizinho
O
homem bem velhinho que cultivava goiabas
Ali
no alto, senhor de tão magnífica paisagem
Sentei-me
e chorei
A
mulher languidamente sedutora
O
irmão estendendo a mão
O
pai olhando em silêncio
A
mãe falando incessantemente
As
pessoas me dizendo e eu nada entendendo
Um
muro e a casa do vizinho
O
homem bem velhinho que falava com as plantas e insetos
Ali
no alto, amando em silêncio
Sentei-me
e chorei
A
cidade tão incrivelmente iluminada
A
movimentada avenida
O
estádio lotado
O
prédio prateado sem fim de tão alto
As
construções mirabolantes na cidade ruidosa
A
miséria e a fome ao redor
Um
muro e a casa do vizinho
O
homem bem velhinho que reparava sua cerca e alimentava o vira-lata
[da
rua]
Sentado
no muro eu consertava o mundo e chorava
O
corpo ardendo em febre
O
ouvido doendo de tanto escutar
O
nariz conflitadamente entupido
Os
músculos irritadamente doloridos
Na
pele as marcas da sobrevivência de um ser vivo
Um
muro e a casa do vizinho
O
homem bem velhinho que cuidava de sua doente esposa
No
alto do muro eu inventava medicinas e chorava
Num
belo dia de outono
Os
passarinhos cantavam timidamente
E
o sol acariciava com delicadeza a tez
Nesse
dia comumente singelo
Decidi
não apenas sentar-me no muro
Queria
ficar mais alto, conhecer mais, fazer mais
Foi
quando escorreguei
Caí,
o joelho sangrou, eu acordei
Estava
do outro lado do muro
E
o vizinho homem bem velhinho
Ajudou-me
a cuidar da ferida
Ele
me disse com amor: a gente levanta para cair de novo.
Deu-me
um beijo e uma goiaba
Contou-me
que sua mulher chamava-se Maria e há anos não mais falava
Contou-me
que em idos tempos adorava sentar-se naquele muro e
[sonhar]
Depois
me disse com olhar profundo: já sabes o segredo
“Nada
é melhor do que sonhar”
Choramos
juntos e nos abraçamos.
No
dia seguinte
Sentei-me
no muro, olhei tudo o que já havia visto antes
Dominei
a beleza do mundo
Inventei
medicinas
Amei
as mais belas mulheres
Liderei
os homens na luta por um mundo melhor
Havia
uma cicatriz no meu joelho
E,
apesar dos olhos tristes
Não
chorei, afinal
Era
apenas um garoto sentado no alto do muro, sonhando
O
vizinho saiu a varanda
Olhou-me
com amor
Fiquei
de pé e gritei corajoso: o senhor me ajudou a não ter mais medo!
Agora,
já posso sonhar sem chorar!
O
velhinho entrou rapidamente, pois queria esconder uma lágrima...
(Extraída
de PEYON, E. Pequenas Conchinhas. Rio de Janeiro: Papel Virtual Ed., 2004)
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