Fim
de tarde. Dia banal, terça, quarta-feira. Eu estava me sentindo muito triste.
Você pode dizer que isso tem sido freqüente demais, ou até um pouco (ou muito)
chato. Mas, que se há de fazer, se eu estava mesmo muito triste?
Tristeza-garoa, fininha, cortante, persistente, com alguns relâmpagos de
catástrofe futura. Projeções: e amanhã, e depois? e trabalho, amor, moradia? o
que vai acontecer? Típico pensamento-nada-a-ver: sossega, o que vai acontecer
acontecerá. Relaxa, baby, e flui: barquinho na correnteza, Deus dará. Essas
coisas meio piegas, meio burras, eu vinha pensando naquele dia. Resolvi andar. Andar
e olhar. Sem pensar, só olhar: caras, fachadas, vitrinas, automóveis, nuvens,
anjos bandidos, fadas piradas, descargas de monóxido de carbono. Da praça
Roosevelt, fui subindo pela Augusta, enquanto lembrava uns versos de Cecília
Meireles, dos Cânticos: “Não digas ‘Eu sofro’. Que é que dentro de ti és tu? /
Que foi que te ensinaram/que era sofrer?” Mas não conseguia parar. Surdo a
qualquer zen-budismo, o coração doía sintonizado com o espinho. Melodrama: nem
amor, nem trabalho, nem família, quem sabe nem moradia – coração achando feio o
não-ter. Abandono de fera ferida, bolero radical. Última das criaturas, surto
de lucidez impiedosa da Big Loira de Dorothy Parker. Disfarçado, comecei a
chorar. Troquei os óculos de lentes claras pelos negros ray-ban – filme.
Resplandecente de infelicidade, eu subia a Rua Augusta no fim de tarde do dia
Tão idiota que parecia não acabar nunca. Ah! como eu precisava tanto de alguém
que me salvasse do pecado de querer abrir o gás. Foi então que a vi. Estava
encostada na porta de um bar. Um bar brega – aqueles da Augusta-cidade, não
Augusta-jardins. Uma prostituta, isso era o mais visível nela. Cabelo
malpintado, cara muito maquiada, minissaia, decote fundo. Explícita, nada
sutil, puro lugar comum patético. Em pé, de costas para o bar, encostada na
porta, ela olhava a rua. Na mão direita tinha um cigarro, na esquerda um copo
de cerveja. E chorava, ela chorava. Sem escândalo, sem gemidos nem soluços, a
prostituta na frente do bar chorava devagar, de verdade. A tinta da cara escorria
com as lágrimas. Meio palhaça, chorava olhando a rua. Vez em quando, dava uma
tragada no cigarro, um gole na cerveja. E continuava a chorar – exposta,
imoral, escandalosa – sem se importar que a vissem sofrendo. Eu vi. Ela não me
viu. Não via ninguém, acho. Tão voltada para a própria dor que estava, também,
meio cega. Via pra dentro: charco, arame farpado, grades. Ninguém parou. Eu,
também, não. Não era um espetáculo imperdível, não era uma dor reluzente de
néon, não estava enquadrada ou decupada. Era uma dor sujinha como lençol usado
por um mês, sem lavar, pobrinha como buraco na sola do sapato. Furo na meia,
dente cariado. Dor sem glamour, de gente habitando aquela camada casca grossa
da vida. Sem o recurso dessas benditas levezas de cada dia – uma dúzia de
rosas, uma música de Caetano, uma caixa de figos. Comecei a emergir. Comparada
à dor dela, que ridícula a minha, dor de brasileiro-médio-privilegiado. Fui
caminhando mais leve. Mas só quando cheguei à Paulista compreendi um pouco
mais. Aquela prostituta chorando, além de eu mesmo, era também o Brasil. Brasil
87: explorado, humilhado, pobre, escroto, vulgar, maltratado, abandonado, sem
um tostão, cheio de dívidas, solidão, doença e medo. Cerveja e cigarro na porta
do boteco vagabundo: carnaval, futebol. E lágrimas. Quem consola aquela
prostituta? Quem me consola? Quem consola você, que me lê agora e talvez sinta
coisas semelhantes? Quem consola este país tristíssimo? Vim pra casa humilde.
Depois, um amigo me chamou para ajudá-lo a cuidar da dor dele. Guardei a minha
no bolso. E fui. Não por nobreza: cuidar dele faria com que eu me esquecesse de
mim. E fez. Quando gemeu “dói tanto”, contei da moça vadia chorando, bebendo e
fumando (como num bolero). E quando ele perguntou “porquê?”, compreendi ainda
mais. Falei: “Porque é daí que nascem as canções”. E senti um amor imenso. Por
tudo, sem pedir nada de volta. Não-ter pode ser bonito, descobri. Mas pergunto
inseguro, assustado: a que será que se destina?
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