quinta-feira, 27 de agosto de 2009




Era manhã de setembro
e
ela me beijava o membro
Aviões e nuvens passavam
coros negros rebramiam
ela me beijava o membro
O meu tempo de menino
o meu tempo ainda futuro
cruzados floriam junto
Ela me beijava o membro
Um passarinho cantava,
bem dentro da árvore, dentro
da terra, de mim, da morte
Morte e primavera em rama
disputavam-se a água clara
água que dobrava a sede
Ela me beijava o membro
Tudo que eu tivera sido
quanto me fora defeso
já não formava sentido
Somente a rosa crispada
o talo ardente, uma flama
aquele êxtase na grama
Ela me beijava o membro
Dos beijos era o mais casto
na pureza despojada
que é própria das coisas dadas
Nem era preito de escrava
enrodilhada na sombra
mas presente de rainha
tornando-se coisa minha
circulando-me no sangue
e doce e lento e erradio
como beijara uma santa
no mais divino transporte
e num solente arrepio
beijava beijava o membro
Pensando nos outros homens
eu tinha pena de todos
aprisionados no mundo
Meu império se estendia
por toda a praia deserta
e a cada sentido alerta
Ela me beijava o membro
O capítulo do ser
o mistério de existir
o desencontro de amar
eram tudo ondas caladas
morrendo num cais longínquo
e uma cidade se erguia
radiante de pedreiras
e de ódios apaziguados
e o espasmo vinha na brisa
para consigo furtar-me
se antes não me desfolhava
como um cabelo se alisa
e me tornava disperso
todo em círculos concêntricos
na fumaça do universo
Beijava o membro
beijava
e se morria beijando
a renascer em setembro

Carlos Drummond de Andrade

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