sexta-feira, 18 de junho de 2010

Juntando Saramago a Saramago

Alice Olive
Na ocasião da doença e seguido falecimento de Mario Benedetti, Saramago separado do amigopoeta por um oceano, mas companheiro de suas convicções, convidou todos ao redor do mundo, juntar Benedetti a Benedetti através da leitura de seus poemas. Façamos o mesmo: juntemos Saramago a Saramago. Nossa maior homenagem, ler Saramago no nosso exercício diário de abrirmos os olhos e intervirmos neste agridoce mundo.

"O Evangelho segundo Jesus Cristo" aberto aleatoriamente na página 363

"Manhã de Nevoeiro. O pescador levanta-se da esteira, olha pela fresta da casa o espaço branco e diz para a mulher, Hoje não vou ao mar, com uma névoa assim até os peixes se perdem debaixo de água. Disse-o este, e, por iguais ou parecidas palavras, também disseram os mais pescadores todos, duma margem e da outra, perplexos pela extraordinária novidade de um nevoeiro impróprio da época do ano em que estamos. Só um, que pescador de ofício não é, ainda que com os pescadores seja o seu viver e trabalhar, assoma à porta da casa como para certificar-se de que é hoje o seu dia, e, olhando o céu opaco, diz para dentro, Vou ao mar. Por trás do seu ombro, Maria de Magdala pergunta, Tens de ir, e Jesus respondeu, Já era tempo, Não comes, Os olhos estão em jejum quando se abrem de manhã. Abraçou-a e disse, Enfim, vou saber quem sou e para o que sirvo (...)"

José Saramago
t-fa� � : B 8� ��* s FB","sans-serif";color:black'>— Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.

— Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.
O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou
de dono.
— Agora posso continuar?
— Continuar o quê?
— O passeio. Eu estava passeando, não viu?
— Vi, sim. Espera um pouco.
— Esperar o quê?
— Passa a carteira.
— Mas...
— Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade?
— Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar...
— E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?
— Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.
— Diga.
— Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.
— Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto do assalto?
— Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?
— É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na testa do cara. Sou civilizado, manja?
— Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra.
— Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.
— Não precisa, não precisa.
— Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau.
— Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.
— Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?
— Claro.
— Você, o assaltado. Certo?
— Confere.
— Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil.
— Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo.
-Tá bom, não se discute.
— Vamos, procure nos... nos escaninhos.
— Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade.
— Deixe ao menos tirar os documentos?
— Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as regras.
— Nem uma de quinhentos? Uma só.
— Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que mora perto.
— Nem eu ia aceitar dinheiro de você.
— Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha.
Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé.

Carlos Drummond de Andrade, Texto extraído do livro "Os dias lindos", Livraria José Olympio Editora — Rio de Janeiro, 1977, pág. 54.


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