quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Porque cantamos

Clayton Bastani
Se cada hora vem com sua morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel

você perguntará por que cantamos

se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha

você perguntará por que cantamos

se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro

você perguntará por que cantamos

cantamos porque o rio esta soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino

cantamos pela infância e porque tudo
e porque algum futuro e porque o povo
cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos

cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota

cantamos porque o sol nos reconhece
e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem a sua resposta

cantamos porque chove sobre o sulco
e somos militantes desta vida
e porque não podemos nem queremos
deixar que a canção se torne cinzas.


Mario Benedetti

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Memorándum

Um chegar e incorporar-se o dia
Dois respirar para subir a ladeira
Três não jogar-se em uma só aposta
Quatro escapar da melancolia
Cinco aprender a nova geografia
Seis não ficar-se nunca sem a sesta
Sete o futuro não será uma festa e
Oito não assustar-se ainda
Nove vai a saber quem é o forte
Dez não deixar que a paciência ceda
Onze cuidar-se da boa sorte
Doze guardar a última moeda
Treze não tratar-se com a morte
Catorze desfrutar enquanto se pode.

Mario Benedetti
(Tradução de Maria Teresa Almeida Pina)

domingo, 20 de dezembro de 2009

Uma furtiva lágrima

O mar insensivelmente azul engolindo-o
O sol ardentemente vermelho marcando-o
A terra secamente laranja cortando-o
O ar friamente cinza invadindo-o
O mundo assustadoramente belo
O mundo maravilhosamente estranho
Um muro e a casa do vizinho
O homem bem velhinho que cultivava goiabas
Ali no alto, senhor de tão magnífica paisagem
Sentei-me e chorei


A mulher languidamente sedutora
O irmão estendendo a mão
O pai olhando em silêncio
A mãe falando incessantemente
As pessoas me dizendo e eu nada entendendo
Um muro e a casa do vizinho
O homem bem velhinho que falava com as plantas e insetos
Ali no alto, amando em silêncio
Sentei-me e chorei


A cidade tão incrivelmente iluminada
A movimentada avenida
O estádio lotado

O prédio prateado sem fim de tão alto
As construções mirabolantes na cidade ruidosa
A miséria e a fome ao redor
Um muro e a casa do vizinho
O homem bem velhinho que reparava sua cerca e alimentava o vira-lata
[da rua]
Sentado no muro eu consertava o mundo e chorava


O corpo ardendo em febre
O ouvido doendo de tanto escutar
O nariz conflitadamente entupido
Os músculos irritadamente doloridos
Na pele as marcas da sobrevivência de um ser vivo
Um muro e a casa do vizinho
O homem bem velhinho que cuidava de sua doente esposa
No alto do muro eu inventava medicinas e chorava


Num belo dia de outono

Os passarinhos cantavam timidamente
E o sol acariciava com delicadeza a tez
Nesse dia comumente singelo
Decidi não apenas sentar-me no muro
Queria ficar mais alto, conhecer mais, fazer mais

Foi quando escorreguei
Caí, o joelho sangrou, eu acordei
Estava do outro lado do muro
E o vizinho homem bem velhinho
Ajudou-me a cuidar da ferida
Ele me disse com amor: a gente levanta para cair de novo.
Deu-me um beijo e uma goiaba
Contou-me que sua mulher chamava-se Maria e há anos não mais falava
Contou-me que em idos tempos adorava sentar-se naquele muro e
[sonhar]
Depois me disse com olhar profundo: já sabes o segredo
“Nada é melhor do que sonhar”
Choramos juntos e nos abraçamos.


No dia seguinte
Sentei-me no muro, olhei tudo o que já havia visto antes
Dominei a beleza do mundo
Inventei medicinas
Amei as mais belas mulheres
Liderei os homens na luta por um mundo melhor
Havia uma cicatriz no meu joelho
E, apesar dos olhos tristes
Não chorei, afinal
Era apenas um garoto sentado no alto do muro, sonhando

O vizinho saiu a varanda
Olhou-me com amor
Fiquei de pé e gritei corajoso: o senhor me ajudou a não ter mais medo!
Agora, já posso sonhar sem chorar!

O velhinho entrou rapidamente, pois queria esconder uma lágrima...

(Extraída de PEYON, E. Pequenas Conchinhas. Rio de Janeiro: Papel Virtual Ed., 2004)


sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A UMA PASSANTE


A rua em derredor era um ruído incomum.
Longa, magra, de luto e na dor majestosa,
Uma mulher passou e com a mão faustosa
Erguendo, balançando o festão e o debrum;

Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata.
Eu bebia perdido em minha crispação
No seu olhar, céu que germina o furacão,
A doçura que embala e o frenesi que mata.

Um relâmpago e após a noite! - Aérea beldade,
E cujo olhar me fez renascer de repente,
Só te verei um dia e já na eternidade?

Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes meu destino, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado - e o sabias demais!


Baudelaire

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Canção Amiga

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.


Drummond
Em Novos Poemas

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Richard Avedon
Difícil isto do ser poético:
Tem dias que nossa veia se esvai,
Vazando um sem número de palavras
Que não se encaixam nem se falam.
(antes fossem mosaicos)
Para formar, num repente,
Um imenso tecido de branco papel.
Então...
As velas da prosa se inflam,
Sopradas pelos ventos do drama,
Singrando os mares do sentido...
Rumo à terra das histórias bem contadas,
Onde todos os finais se encontram.


Rodrigo Soprana

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Trenzinho Caipira

Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade e noite a girar
Lá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra
Vai pela serra
Vai pelo mar
Cantando pela serra o luar
Correndo entre as estrelas a voar
no ar, no ar...

Heitor Villa Lobos

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009


De amor e de Morte


Na janela de casa aprendi pequena a Beber do meu abismo
Deve ser leve perdoar os humores frígidos
Faço do tédio o balde que recolhe as gotas que caem do telhado.
Sempre Chove enquanto estou sonhando, milímetros ultrapassam
Em torno do tempo ursos polares com drinks derretidos se reúnem
O rei permanece fumando seus cigarros.
Entre olhos tumultuados a dor da vida em cor violeta.
Viver é tão cão e neve.
inevitável Amor?
Celebremos os Hexacampeões.
Ao invés de compras,
caso na porta de casa com bailarinos e poetas,
aqueles que fazem rir e que deixam espaço na cama.
Mais tarde, falar todos os dias com mamãe.
temperar suas dores com as palavras doces que guardo na cesta de frutas.
Essa pele permeável ainda me sufoca,
vou me esconder atrás da porta.
Encenar um homicídio,
serão poupadas as crianças e os girassóis.
Que o resto da bicharada vá compor sambas de despedida.

Serão felizes os poetas?

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

MURILOGRAMA A RIMBAUD

Inventa.
Excede do século.
Porta a partitura do caos.
Blouson noir / beat / arrabbiato:
Duro. Ar vermelho. Górgone.
Orientaliza o Ocidente.
Barcobêbedo. Anarqlúcido.
O céu-elétrico-no Índex.
Fixa a vertigem, silêncios.
Dioscuro, exclui o Oscuro.
Abole Musset, astro ociduo.
Refratário. Ambíguo. Fálico.
Osíris de T e açoite.
Canta: retira-se a flauta.
“Merveilleux”: lê “merdeilleux”.
Desdá. Desintegra.
Adenta.
Consonantiza as vogais.
Perpetuum móbile.
Médium.
Ignirouba.
Se antecede.
Morre a jato: se ultrapassa.
Desdiz a noite compacta.
Autovidente & do cosmo.
Além do signo e do símbolo.
A idéia do Dilúvio senta-se.
Murilo Mendes