terça-feira, 27 de julho de 2010

Flor

Canto do Buriti.
A moça abre a mala.
Levanta a tampa.
Salta a pesada carga que trouxe:
Poeiras que não são aquelas,
Securas de outras formas,
Lembranças que lhe travam a fala.

Fecha a mala,
antes tira de lá apenas um teso - o medo.

Uruçuí.
Senta numa pedra acerca de uma praia do Parnaíba.
Anda o rio,
Passa o agricultor de soja.
Desloca a primeira nuvem de sua visão.
Esta no semi-árido.
Tem tempo.

São Raimundo Nonato.
Hora de se religar ao elementar.
Comida que dá do cerrado ao chapadão.
Arte que recobre seu mais largo sorriso.
Amor que inspira toda a existência
seja de pedra, seja em vão.
Encontra ali,
Intocado,
o patrimônio da integridade de sua humanidade

Balsas.
Chora, vomita, grita, sente calor
Está tudo atravessando sua pele
Bebe em rosa e em doce.
Já brilha.

Colinas do Tocantins.
Outeiro das saudades.

Imperatriz.
Abre a mala na última parada antes de retornar
Salta a pesada carga que vem:
A comunhão com os homens e suas realizações
As verdades que apenas o chão sabe nos dizer
A Coragem que o viver exige das mulheres.

Fecha a mala,
Antes guarda lá apenas um teso - si mesma.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Penso logo resisto
Insisto já que respiro
Pressinto enquanto conspiro

Caminho nas margens da estrada
Sou curva de flama estranhada
O amanhã?
Diante da vida
diante da morte
Sei mesmo que sinto
sei mesmo do nada
Na palavra não preciso colonizar universos.
Está tudo aqui, dentro da caneta esferográfica.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O fotógrafo

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:... Ver mais
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre
as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado,
Preparei minha máquina.
O silêncio era o carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou para mim que ela andava na aldeia de
braços com Maiakovski – seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.

Manoel de Barros

Três Metades

Luiz Humberto
Meio dia,
um dia e meio,
meio dia, meio noite,
metade deste poema... Ver mais
não sai na fotografia,
metade, metade foi-se.

Mas eis que a terça metade,
aquela que é menos dose
de matemática verdade
do que soco, tiro, ou coice,
vai e vem como coisa
de ou, de nem, ou de quase.

Como se a gente tivesse
metades que não combinam,
três partes, destempestades,
três vezes ou vezes três,
como se quase, existindo,
só nos faltasse o talvez.

Paulo Leminski




quinta-feira, 8 de julho de 2010

Uma espécie de Vulcão

Ideologia

Meu partido
É um coração partido
E as ilusões
Estão todas perdidas
Os meus sonhos
Foram todos vendidos
Tão barato
Que eu nem acredito
Ah! eu nem acredito...

Que aquele garoto
Que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Frequenta agora
As festas do "Grand Monde"...

Meus heróis
Morreram de overdose
Meus inimigos
Estão no poder
Ideologia!
Eu quero uma pra viver
Ideologia!
Eu quero uma pra viver...

O meu prazer
Agora é risco de vida
Meu sex and drugs
Não tem nenhum rock 'n' roll
Eu vou pagar
A conta do analista
Pra nunca mais
Ter que saber
Quem eu sou
Ah! saber quem eu sou..

Pois aquele garoto
Que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Agora assiste a tudo
Em cima do muro
Em cima do muro...

Meus heróis
Morreram de overdose
Meus inimigos
Estão no poder
Ideologia!
Eu quero uma pra viver
Ideologia!
Pra viver...

Pois aquele garoto
Que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Agora assiste a tudo
Em cima do muro
Em cima do muro...

Meus heróis
Morreram de overdose
Meus inimigos
Estão no poder
Ideologia!
Eu quero uma pra viver
Ideologia!
Eu quero uma pra viver..
Ideologia!
Pra viver
Ideologia!
Eu quero uma pra viver...


Cazuza
Composição: Cazuza / Frejat

Que vai ser quando crescer?
Vivem perguntando em redor.
Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer?
Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom?
É triste?
Ser: pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: ser, ser.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a?
Posso escolher?
Não dá para entender. Não vou ser.
Não quero ser. Vou crescer assim mesmo.
Sem ser. Esquecer.

Carlos Drummond de Andrade


segunda-feira, 5 de julho de 2010

A língua girava no céu da boca

A língua girava no céu da boca. Girava! Eram duas bocas, no céu único.

O sexo desprendera-se de sua fundação, errante imprimia-nos seus traços de cobre. Eu, ela, elaeu.

Os dois nos movíamos possuídos, trespassados, eleu. A posse não resultava de ação e doação, nem nos somava. Consumia-nos em piscina de aniquilamento. Soltos, fálus e vulva no espaço cristalino, vulva e fálus em fogo, em núpcia, emancipados de nós.

A custo nossos corpos, içados do gelatinoso jazigo, se restituíram à consciência. O sexo reintegrou-se. A vida repontou: a vida menor.

Carlos Drummond de Andrade - "O amor natural", Editora Record – RJ, 1992, pág. 29.

sábado, 3 de julho de 2010

AS NUVENS

As nuvens são cabelos
crescendo como rios;
são os gestos brancos
da cantora muda;

são estátuas em vôo
à beira de um mar;
a flora e a fauna leves
de países de vento;

são o olho pintado
escorrendo imóvel;
a mulher que se debruça
nas varandas do sono;

são a morte (a espera da)
atrás dos olhos fechados;
a medicina branca!
nossos dias brancos.


João Cabral de Melo Neto

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Não sei falar a língua dos anjos


Hoje fui comungar com o mar...
Trombei com um anjo sentado em uma onda.
Achei que era uma miragem
até tocar suas asas despejadas na espuma.

Pensei: neste pedaço de mar avistei o sincero do céu?
Na dúvida não pude deixá-lo deslizar para longe,
agarrei seu dedo do pé submerso ao largo de milhas de maresia.
Estava absorto o anjo
e mesmo em contato com a humanidade de minha mão
não notou minha presença.

Chamei-o pelos nomes dos querubins que me ocorriam
gabriel...
ariel...
daniel...
Não me atendeu
Nem se quer levantou a cabeça.

Estúpida supus,
como todas as igrejas,
que era dever do anjo olhar por mim
Ofendeu-me sua indiferença.
Acordei com a cara cheia de areia.