domingo, 28 de agosto de 2011

Fisionomia


Não é mentira
é outra
a dor que dói
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outra
outra a dor que dói.

Ana Cristina Cesar

Destruição

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre,
deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 21 de agosto de 2011


- Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver!

- Você é louco?
- Não, sou poeta.

Mario Quintana



Parem, eu confesso, sou poeta.
Cada manhã que nasce me nasce uma rosa na face.
Parem, eu confesso, sou poeta.
Só meu amor é meu deus, eu sou ou seu profeta


Paulo Leminski


sábado, 20 de agosto de 2011

Interrogações


Nenhuma pergunta demanda resposta.
Cada verso é uma pergunta do poeta.
E as estrelas...
as flores...
o mundo...
são perguntas de Deus.

Mario Quintana


segunda-feira, 15 de agosto de 2011

No pequeno museu sentimental



Robert Gojevic



No pequeno museu sentimental
os fios de cabelo religados
por laços mínimos de fita
são tudo que dos montes hoje resta,
visitados por mim, montes de Vênus.

Apalpo, acaricio a flora negra,
e negra continua, nesse branco
total do tempo extinto
em que eu, pastor felante, apascentava
caracóis perfumados, anéis negros,
cobrinhas passionais, junto do espelho
que com elas rimava, num clarão.

Os movimentos vivos no pretérito
enroscam-se nos fios que me falam
de perdidos arquejos renascentes
em beijos que da boca deslizavam
para o abismo de flores e resinas.
Vou beijando a memória desses beijos.

Carlos Drummond de Andrade


quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Liquido

Naquele dia de ressaca,
Eu mal sabia que um mortal devolve ao mar,
todos os seus segredos.

A boca presa de moléstias recorre ao cão,
o mesmo cão miserável do tempo da convocação dos carcereiros.
Insistem os abrigos feitos de âncoras: Não.

Mesmo que eu tenha medo da sua pedra,
o amar é uma espécie de deus líquido.
Solvente universal dos corpos feios.

Agora que já não sou moça,
Me joguei nas suas plantas.
É quando afundo na correnteza dos botos
e ouço dizer-me depressa:
os peixes lá fora se meditam.

Todas as vezes que eu abro nossa antologia poética,
morda a fruta suculenta
para que eu possa escorrer no cheiro de alfazema.

A arte é a violência de nadar.


sábado, 6 de agosto de 2011


 Dito dizia que o certo era a gente estar sempre brabo de alegre, alegre por dentro, mesmo com tudo de ruim que acontecesse, alegre nas profundas. Podia? Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma.




João Guimarães Rosa. Campo geral. In: Ficção completa

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Canção Óbvia


















Escolhi a sombra de uma árvore para meditar
no muito que podia fazer enquanto te esperava
quem espera na pura esperança
vive um tempo de espera qualquer.
Por isso enquanto te espero
trabalharei nos campos e dialogarei com homens, mulheres e crianças
minhas mãos ficarão calosas
meus pés aprenderão os mistérios dos caminhos
meu corpo será queimado pelo sol
meus olhos verão o que nunca tinham visto
meus ouvidos escutarão ruídos antes despercebidos
na difusa sonoridade de cada dia.
Desconfiarei daqueles que venham me dizer
à sombra daquela árvore, prevenidos
que é perigoso esperar da forma que espero
que é perigoso caminhar
que é perigoso falar...
porque eles rechaçam a alegria de tua chegada.
Desconfiarei também daqueles que venham me dizer
à sombra desta árvore, que tu já chegaste
porque estes que te anunciam ingenuamente
antes de denunciavam.
Esperarei por ti como o jardineiro
que prepara o jardim para a rosa
que se abrirá na primavera

Paulo Freire

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O poeta me viu


bastou um olhar
e pode ver
a mola mestra
da aprendiz
que sou

a escolha que fiz
no avesso e apesar
da sorte adversa
de não pesar
de ser feliz

poeta é quem vê
o que não é de dizer
e ainda assim

diz

Alice Ruiz