terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Sentio, ergo sum


Esse não é um protesto.
Dei para me ocupar do pensamento do tempo.
Eu bem precisava  desse reencontro com os versos 
que melhor se chamaram primavera.
O que te peço?  
Sentir sob as formas, as coisas.
É que tenho longa longa longa saudades do embalar das coisas.

Aconteceu talvez em uma montanha, 
se houvesse como explicar quando se troca de pele.
Era os quinze anos do tempo.
 Eu me lembro agora. 
Uma conversa do tempo me fez entender.
Chamem de pista.
 Estava florescido em toda a natureza das coisas:
"essa caminhada, uma promessa de conhecimento, talvez de amor".

Foi assim:
Além da terra, além do céu, o rumo da subida forçou à afeição do estar com o mundo.
Detido no alcance da pele. 
Sim, ali, estava o primeiro beijo. 
Não de pedestre, mas de batucada.
Eu colhi e recolhi o homem livre e ligado.

Certas palavras desamarraram.
A poesia e o mistério vigiaram sobre as coisas.
Sentio, ergo sum.
Não era mais as coisas.
Fora as coisas inúmeras vezes antes,
E logo o corpo se rebelou contra a infância do tempo.

O renascimento, anunciador do tempo consumido, 
solene em suas despedidas, abreviou: 
não serás de um modo só e quase único, já não lhe basta.
Tempus furgit.
Nasceste com as coisas.

Feche o poema,
às vezes é melhor calar e sobreviver.



Soberania

 


Colleen Parker

Naquele dia, no meio do jantar, eu contei que
tentara pegar na bunda do vento — mas o rabo
do vento escorregava muito e eu não consegui
pegar. Eu teria sete anos. A mãe fez um sorriso
carinhoso para mim e não disse nada. Meus irmãos
deram gaitadas me gozando. O pai ficou preocupado
e disse que eu tivera um vareio da imaginação.
Mas que esses vareios acabariam com os estudos.
E me mandou estudar em livros. Eu vim. E logo li
alguns tomos havidos na biblioteca do Colégio.
E dei de estudar pra frente. Aprendi a teoria
das idéias e da razão pura. Especulei filósofos
e até cheguei aos eruditos. Aos homens de grande
saber. Achei que os eruditos nas suas altas
abstrações se esqueciam das coisas simples da
terra. Foi aí que encontrei Einstein (ele mesmo
— o Alberto Einstein). Que me ensinou esta frase:
A imaginação é mais importante do que o saber.
Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira. Botei
um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu
olho começou a ver de novo as pobres coisas do
chão mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E
meditei sobre as borboletas. Vi que elas dominam
o mais leve sem precisar de ter motor nenhum no
corpo. (Essa engenharia de Deus!) E vi que elas
podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as
próprias asas. E vi que o homem não tem soberania
nem pra ser um bentevi.

 

Manoel de Barros


Texto extraído do livro (caixinha) "Memórias Inventadas - A Terceira Infância", 2008.



domingo, 27 de janeiro de 2013

1,99



Não,
Não nascemos na pós-modernidade do poder oblíquo.
Na terra da cana,
o poder é de pólvora.
Arvora-se sempre em matar nossos sonhos de terra justa.
Atira na cabeça.
Atira nas costas.

Nas terras do sul,
o poder é de fogo.
Cobra a conta antes de abrir a porta.
Você nasceu?
Tem certeza, você nasceu?
Sei não.
Talvez seja só um embrulho.

Um embrulho de 1,99.

Dizes-me: tu és mais alguma coisa




Dizes-me: tu és mais alguma coisa
Que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm ideias sobre o mundo?

Sim: há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as coisas:
Só me obriga a ser consciente.

Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei,
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.

Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser.
Sei que é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.

Sei que a pedra é a real, e que a planta existe.
Sei isto porque elas existem.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Sei que sou real também.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram,
Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.
Não sei mais nada.

Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.
Sim, faço ideias sobre o mundo, e a planta nenhumas.
Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;
E as plantas são plantas só, e não pensadores.
Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto,
Como que sou inferior.
Mas não digo isso: digo da pedra, «é uma pedra»,
Digo da planta, «é uma planta»,
Digo de mim, «sou eu».
E não digo mais nada. Que mais há a dizer?



Alberto Caeiro

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Alerta



Lá vem o lança-chamas
Pega a garrafa de gasolina
Atira
Eles querem matar todo amor
Corromper o pólo
Estancar a sede que eu tenho doutro ser
Vem do flanco, de lado
Por cima, por trás
Atira
Atira
Resiste
Defende
De pé
De pé
De pé
O futuro será de toda a humanidade.

Oswald de Andrade

domingo, 20 de janeiro de 2013

Quem és tu


Quem és tu que assim vens pela noite adiante,
Pisando o luar branco dos caminhos,
Sob o rumor das folhas inspiradas?

A perfeição nasce do eco dos teus passos,
E a tua presença acorda a plenitude
A que as coisas tinham sido destinadas.

A história da noite é o gesto dos teus braços,
O ardor do vento a tua juventude,
E o teu andar é a beleza das estradas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Na montanha

  
À beira da montanha fogem agora os pensamentos.
A subida coroa-se em tempo presente, 
mesmo quando seus dorsos são tão antigos e precisos.
O tempo da pedra não exige obrigação. 
A única obrigação é a do corpo.
A montanha devolve seu próprio corpo orgânico.
Assim, 
o tronco nu pode servir-te das faculdades de amar a si mesmo.


... A respiração é a pontuação do possível.
Por isso, não perturbam as ausências 


são cheirosas as pequenas frutinhas do medo.
Mais importante é o vento.
Fiquei companheira de ti, vento.
Porque a montanha sabe de si pelo vento.
Se o homem alcança sua voz,


 respeita a vontade da montanha.
E se tu a olhas e és olhado.,


estamos falando de um acontecimento sideral.
Um tratado, não.
Apenas pedaços recuperados de nossa humanidade.