quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Agro-tóxico

gianluca.foli

Quando os tomates 
duram mais de três semanas 
na geladeira,
Alguma coisa está fora da ordem natural.

domingo, 23 de setembro de 2012

Biblioteca verde


Papai, me compra a Biblioteca Internacional de Obras Célebres.
São só 24 volumes encadernados
Em percalina verde.
Meu filho, é livro demais para uma criança.
Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo.
Quando crescer eu compro. Agora, não.
Papai, me compra agora. É em percalina verde,
Só 24 volumes. Compra, compra, compra.
Fica quieto, menino, eu vou comprar.

Rio de Janeiro? Aqui é o coronel.
Me mande urgente sua Biblioteca
Bem acondicionada, não quero defeito.
Se vier com arranhão recuso, já sabe:
quero devolução de meu dinheiro.
Está bem, Coronel, ordens são ordens.
Segue a Biblioteca pelo trem-de-ferro,
Fino caixote de alumínio e pinho.
Termina o ramal, o burro de carga
Vai levando tamanho universo.

Chega cheirando a papel novo, mata
de pinheiros toda verde. Sou
o mais rico menino destas redondezas.
(Orgulho, não; inveja de mim mesmo.)
Ninguém mais aqui possui a coleção
das Obras Célebres. Tenho de ler tudo.
Antes de ler, que bom passar a mão
no som da percalina, esse cristal
de fluida transparência: verde, verde.
Amanhã começo a ler. Agora não.

Agora quero ver figuras. Todas.
Templo de Tebas. Osíris, Medusa,
Apolo nu, Vênus nua... Nossa
Senhora, tem disso nos livros?
Depressa, as letras. Careço ler tudo.
A mãe se queixa: Não dorme este menino.
O irmão reclama: Apaga a luz, cretino!
Espermacete cai na cama, queima
a perna, o sono. Olha que eu tomo e rasgo
essa Biblioteca antes que pegue fogo
na casa. Vai dormir, menino, antes que eu perca
a paciência e te dê uma sova. Dorme,
filhinho meu, tão doido, tão fraquinho.

Mas leio, leio. Em filosofias
tropeço e caio, cavalgo de novo
meu verde livro, em cavalarias
me perco, medievo; em contos, poemas
me vejo viver. Como te devoro,
verde pastagem. Ou antes carruagem
de fugir de mim e me trazer de volta
à casa a qualquer hora num fechar
de páginas?

Tudo que sei é ela que me ensina.
O que saberei, o que não saberei
Nunca,
está na Biblioteca em verde murmúrio
de flauta-percalina eternamente.

Carlos Drummond de Andrade


Esta gente



Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco 

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis 

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome 

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada 

Meu canto se renova
E recomeço a busca
Dum país liberto
Duma vida limpa
E dum tempo justo 

Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 22 de setembro de 2012

Improviso


Cecília, és libérrima e exata
Como a concha.
Mas a concha é excessiva matéria,
E a matéria mata.

Cecília, és tão forte e tão frágil
Como a onda ao termo da luta.
Mas a onda é água que afoga:
Tu, não, és enxuta.

Cecília, és, como o ar,
Diáfana, diáfana.
Mas o ar tem limites:
Tu, quem te pode limitar?

Definição:
Concha, mas de orelha:
Água, mas de lágrima;
Ar com sentimento.
- Brisa, viração
Da asa de uma abelha
 
Manuel Bandeira

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Poema XIII

João Roberto Ripper

Não me procures ali
Onde os vivos visitam
Os chamados mortos.
Procura-me
Dentro das grandes águas
Nas praças
Num fogo coração
Entre cavalos, cães,
Nos arrozais, no arroio
Ou junto aos pássaros
Ou espelhada
Num outro alguém,
Subindo um duro caminho
Pedra, semente, sal
Passos da vida. Procura-me ali.
Viva.

Hilda Hilst

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Elegia

Rogerio Fernandes


Teu sorriso se abriu como uma anêmona
entre as covinhas do rosto infantil.
Estavas de pijama verde,
nas almofadas verdes,
os pezinhos nus, as pernas cruzadas,
pequenina,
como um ídolo de jade
que teve por modelo uma princesa anamita.
Tuas mãos sorriam,
teus olhos sorriam,
o liso dos teus cabelos pretos sorria,
e mesmo me sorriste,
e foi a única vez...

Não pude calçar, com beijos os teus pezinhos,
e não pudeste caminhar para mim...
Mas é bem assim que os meus sonhos se possuem.

João Guimarães Rosa

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Fundo do Mar

Rafael de Penedos
No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.



Sophia de Mello Breyner

domingo, 2 de setembro de 2012

Raízes


 Uma vez um homem deitou-se, todo, em cima da terra. A areia lhe servia de almofada. Dormiu toda a manhã e quando se tentou levantar não conseguiu. Queria mexer a cabeça: não foi capaz. Chamou pela mulher e pediu-lhe ajuda.
- Veja o que me está a prender a cabeça.
A mulher espreitou por baixo da nuca do marido, puxou-lhe levemente pela testa. Em vão. O homem não...
desgrudava do chão.
- Então, mulher? Estou amarrado?
- Não, marido, você criou raízes.
- Raízes?
Já se juntavam as vizinhanças. E cada um puxava sentença. O
homem, aborrecido, ordenou à esposa:
- Corta!
- Corta, o quê?
- Corta essa merda das raízes ou lá o que é...
A esposa puxou da faca e lançou o primeiro golpe. Mas logo parou. - Dói-lhe?
- Quase nem. Porquê me pergunta?
- É porque está sair sangue.
Já ela, desistida, arrumara o facão. Ele, esgotado, pediu que alguém
o destroncasse dali. Me ajudem, suplicou. Juntaram uns tantos, gentes da terra. Aquilo era assunto de camponês. Começaram a escavar o chão, em volta. Mas as raízes que saíam da cabeça desciam mais fundo que se podia imaginar. Cavaram o tamanho de um homem e elas continuavam para o fundo. Escavaram mais que as fundações de uma montanha e não se vislumbrava o fim das radiculações.
- Me tirem daqui, gemia o homem, já noite.
Revezaram-se os homens, cada um com sua pá mais uma enxada. Retiraram toneladas de chão, vazaram a fundura de um buraco que nunca ninguém vira. E laborou-se semanas e meses. Mas as raízes não só não se extinguiam como se ramificavam em mais redes e novas radículas. Até que já um alguém, sabedor de planetas, disse:
- As raízes dessa cabeça dão a volta ao mundo.
E desistiram. Um por um se retiraram. A mulher, dia seguinte, chamou os sábios. Que iria ela fazer para desprender o homem da inteira terra? Pode-se tirar toda a terra, sacudir as remanascentes areias, disse um. Mas um outro argumentou: assim teríamos que transmudar o planeta todo inteiro, acumular um monte de terra do tamanho da terra. E o enraizado, o que se faria dele e de todas suas raízes? Até que falou o mais velho e disse:
- A cabeça dele tem que ser transferida.
E para onde, santos deuses? Se entreolharam todos, aguardando pelo parecer do mais velho.
- Vamos plantar a cabeça dele lá!
E apontou para cima, para as celestiais alturas. Os outros devolveram a estranheza. Que queria o velho dizer?
- Lá, na lua.
E foi assim que, por estreia, um homem passou a andar com a cabeça na lua. Nesse dia nasceu o primeiro poeta.

 Mia Couto, Contos do nascer da Terra