sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Um dos lugares onde coloco o sentimento do Natal

Foto: Marcelo Valle. Itaobim, MG
Qual é o lugar mais importante da sua casa? Eu acho que essa é uma boa pergunta para início de uma sessão de psicanálise. Porque quando a gente revela qual é o lugar mais importante da casa, a gente revela também o lugar preferido da alma. Nas Minas Gerais onde nasci o lugar mais importante era a cozinha. Não era o mais chique e nem o mais arrumado. Lugar chique e arrumado era a sala de visitas, com bibelôs, retratos ovais nas paredes, espelhos e tapetes no chão. Na sala de visitas as crianças se comportavam bem, era só sorrisos e todos usavam máscaras. Na cozinha era diferente: a gente era a gente mesmo, fogo, fome e alegria.
"Seria tão bom, como já foi...", diz a Adélia. A alma mineira vive de saudade. Tenho saudade do que já foi, as velhas cozinhas de Minas, com seus fogões de lenha, cascas de laranja secas, penduradas, para acender o fogo, bule de café sobre a chapa, lenha crepitando no fogo, o cheiro bom da fumaça, rostos vermelhos. Minha alma tem saudades dessas cozinhas antigas...
Fogo de fogão de lenha é diferente de todos os demais fogos. Veja o fogo de uma vela acesa sobre uma mesa. É fogo fácil. Basta encostar um fósforo aceso no pavio da vela para que ela se acenda. Não é preciso nem arte nem ciência. Até uma criança sabe. Só precisa um cuidado: deixar fechadas as janelas para que um vento súbito não apague a chama. O fogo do fogão é outra coisa. Bachelard notou a diferença: "A vela queima só. Não precisa de auxílio.
       A chama solitária tem uma personalidade onírica diferente da do fogo na lareira. O homem, diante de um fogo prolixo pode ajudar a lenha a queimar, coloca uma acha suplementar no tempo devido. O homem que sabe se aquecer mantém uma atitude de Prometeu. Daí seu orgulho de atiçador perfeito..." Fogo de lareira é igual ao fogo do fogão de lenha. Antigamente não havia lareiras em nossas casas. O que havia era o fogo do fogão de lenha que era, a um tempo, fogo de lareira e fogo de cozinhar.
As pessoas da cidade, que só conhecem a chama dos fogões a gás, ignoram a arte que está por detrás de um fogão de lenha aceso. Se os paus grossos, os paus finos e os gravetos não forem colocados de forma certa, o fogo não pega. Isso exige ciência. E depois de aceso o fogo é preciso estar atento. É preciso colocar a acha suplementar, do tamanho certo, no lugar certo. Quem acende o fogo do fogão de lenha tem de ser também um atiçador.
O fogão de lenha nos faz voltar "às residências de outrora, as residências abandonadas mas que são, em nossos devaneios, fielmente habitadas" (Bachelard). Exupèry, no tempo em que os pilotos só podiam se orientar pelos fogos dos céus e os fogos da terra, conta de sua emoção solitária no céu escuro, ao vislumbrar, no meio da escuridão da terra, pequenas luzes: em algum lugar o fogo estava aceso e pessoas se aqueciam ao seu redor.
Já se disse que o homem surgiu quando a primeira canção foi cantada. Mas eu imagino que a primeira canção foi cantada ao redor do fogo, todos juntos se aquecendo do frio e se protegendo contra as feras. Antes da canção, o fogo. Um fogo aceso é um sacramento de comunhão solitária. Solitária porque a chama que crepita no fogão desperta sonhos que são só nossos. Mas os sonhos solitários se tornam comunhão quando se aquece e come.
Nas casas de Minas a cozinha ficava no fim da casa. Ficava no fim não por ser menos importante mas para ser protegida da presença de intrusos. Cozinha era intimidade. E também para ficar mais próxima do outro lugar de sonhos, a horta-jardim. Pois os jardins ficavam atrás. Lá estavam os manacás, o jasmim do imperador, as jabuticabeiras, laranjeiras e hortaliças. Era fácil sair da cozinha para colher xuxús, quiabo, abobrinhas, salsa, cebolinha, tomatinhos vermelhos, hortelã e, nas noites frias, folhas de laranjeira para fazer chá.
Ah! Como a arquitetura seria diferente se os arquitetos conhecessem também os mistérios da alma! Se Niemeyer tivesse feito terapia, Brasília seria outra. Brasília é arquitetura de arquitetos sem alma. Se eu fosse arquiteto minhas casas seriam planejadas em torno da cozinha. Das coisas boas que encontrei nos Estados Unidos nos tempos em que lá vivi estava o jeito de fazer as casas: a sala de estar, a sala de jantar, os livros, a escrivaninha, o aparelho de som, o jardim, todos integrados num enorme espaço integrado na cozinha. Todos podiam participar do ritual de cozinhar, enquanto ouviam música e conversavam. O ato de cozinhar, assim, era parte da convivência de família e amigos, e não apenas o ato de comer. Eu acho que nosso costume de fazer cozinhas isoladas do resto da casa é uma reminiscência dos tempos em que elas eram lugar de cozinheiras negras escravas, enquanto as sinhás e sinhazinhas se dedicavam, em lugares mais limpos, a atividades próprias de dondocas como o ponto de cruz, o frivolité, o crivo, a pintura e a música. Se alguém me dissesse, arquiteto, que o seu desejo era uma cozinha funcional e prática, eu imediatamente compreenderia que nossos sonhos não combinavam, delicadamente me despediria e lhes passaria o cartão de visitas de um arquiteto sem memórias de cozinhas de Minas.
As cozinhas de fogão de lenha não resistiram ao fascínio do progresso. As donas de casa, em Minas, por medo de serem consideradas pobres, dotaram suas casas de modernas cozinhas funcionais, onde o limpíssimo e apagado fogão à gás tomou o lugar do velho fogão de lenha. As cozinhas, agora, são extensões da sala de visitas. Mas isto é só para enganar. A alma delas continua a morar nas cozinhas velhas, agora transferidas para o quintal, onde a vida é como sempre foi. Lá é tão bom, porque é como já foi.
Eu gostaria de ser muitas coisas que não tive tempo e competência para ser. A vida é curta e as artes são muitas. Gostaria de ser pianista, jardineiro, artista de ferro e vidro - talvez monge. E gostaria de ter sido um cozinheiro. Babette. Tita. Meu pai adorava cozinhar. Eu me lembro dele preparando os peixes, cuidadosamente puxando a linha que percorre o corpo dos papa-terras, curimbas, para que não ficassem com gosto de terra. E me lembro do seu rosto iluminado ao trazer para a mesa o peixe assado no forno.
Faz tempo, num espaço meu, eu gostava de reunir casais amigos uma vez por mês para cozinhar. Não os convidava para jantar. Convidava para cozinhar. A festa começava cedo, lá pelas seis da tarde. E todos se punham a trabalhar, descascando cebola, cortando tomates, preparando as carnes. Dizia Guimarães Rosa: "a coisa não está nem na partida e nem na chegada, mas na travessia." Comer é a chegada. Passa rápido. Mas a travessia é longa. Era na travessia que estava o nosso maior prazer. A gente ia cozinhando, bebericando, beliscando petiscos, rindo, conversando. Ao final, lá pelas onze, a gente comia. Naqueles tempos o que já tinha sido voltava a ser. A gente era feliz.
Sinto-me feliz cozinhando. Não sou cozinheiro. Preparo pratos simples. Gosto de inventar. O que mais gosto de fazer são as sopas. Vaca atolada, sopa de fubá, sopa de abóbora com maracujá, sopa de beringela, sopa da mandioquinha com manga, sopa de coentro... Você já ouviu falar em sopa de coentro? É sopa de portugueses pobres, deliciosa, com muito azeite e pão torrado. A sopa desce quente e, chegando no estômago, confirma...A culinária leva a gente bem próximo das feiticeiras. Como a Babette (A festa de Babette) e a Tita (Como água para chocolate)... (Correio Popular, Caderno C, 19/03/2000.)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Aniversário de 95 anos do Poeta

Nasci para administrar o à-toa
o em vão
o inútil.
Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã
no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também
sabedoria mineral.

Manoel de Barros

domingo, 18 de dezembro de 2011

A canção da vida

A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)

Ame o seu domingo, a sede, a roda, o escuro, o sono, a peleja

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Tática e Estratégia

Minha tática é olhar-te
aprender como tu és
querer-te como tu és

minha tática é falar-te
e escutar-te
construir com palavras
uma ponte indestrutível

minha tática é ficar em tua lembrança
não sei como nem sei
com que pretexto
porém ficar em ti

minha tática é ser franco
e saber que tu és franca
e que não nos vendemos
simulados
para que entre os dois
não haja cortinas
nem abismos

minha estratégia é em outras palavras
mais profunda e mais simples

minha estratégia é que um dia qualquer
não sei como nem sei
com que pretexto
por fim me necessites.

Mario Benedetti

Feita a volta olímpica: retorno


Vem amor, vem cantar

Pois meus olhos
Ficam querendo chorar
Deixe a mágoa pra depois
O amor é mais importante a dois.

Chora sanfona sentida
Em meu peito gemendo
Vai machucando
E o meu peito de amor vai morrendo

Quanto mais chora
Me entrego todinho ao amor
E teu gemido disfarça
Em m´alma essa dor

sábado, 10 de dezembro de 2011

Encarar olhar


Diante da vida o que se põe é o que se tem.
O mistério não te responderá aquilo que não se pergunta.
Estar feliz, guerreiro e firme exige
Atenção flutuante...
Vigilância preguiçosa.

Não confundir firmeza com rigidez.
É preciso ter o corpo e a alma firmemente soltos -
assim como uma criança -,
para dar-se a ausência que suporta uma escolha,
aceitar os termos que  prescindem os projetos que não se realizam,
a doença e a morte que acusam o tempo de vigor da vida.
A morte nada mais do que o recado definitivo da vida.
O aviso de que é no hoje que se deve está.

Não busque no outro aquilo que você quer ser.
É no detalhe que se deve colocar  felicidade,
caso contrário, enlouquece-se.
Não aceite que sua alma se quebre cristalizada
pela tradição, pelo medo, pela solidão.
Entender que esses e seus reveses são em potência e em limite a substância de nossa existência.
Quanto mais jovem lamber suas sombras e monstros,
mais será amigo de si próprio.

Aceita que viver é complexo mesmo.
é chama que aquece e queima.

E que o infinito se reduz a uma caminhada breve 
entre as estrelas e o corpo e de volta às estrelas.

Eva Luna


Era uma vez uma mulher cujo ofício era contar histórias. Ela andava por todo lado oferecendo sua mercadoria, relatos de aventuras, de suspense, de horror ou luxúria, tudo a preço de justo. Certo meio-dia de agosto, estava no meio de uma praça, quando viu caminhar em sua direção um homem altivo, magro e espigado como um sabre. Vinha cansado, com uma arma no braço, coberto de poeira de lugares distantes e, quando parou, ela percebeu um cheiro de tristeza e, imediatamente, soube que aquele homem vinha da guerra. A solidão e a violência tinham-lhe introduzido estilhaços de metal no coração e o haviam privado das faculdades de amar a si mesmo. É você a que conta histórias?, perguntou o estranho. Para servi-lo, respondeu ela. O homem pegou cinco moedas de ouro e a pôs na mão da mulher. Então, venda-me um passado, porque o meu está cheio de sangue e de gemidos, não me serve para percorrer a vida, estive em tantas batalhas, que lá esqueci até o nome de minha mãe, disse ele. Ela não pode negar-se, por recear que o estranho caísse na praça, transformado em um punhado de poeira, como finalmente acontece aos que não possuem boas lembranças. Disse-lhe para sentar-se a seu lado e, ao ver seus olhos de perto, sentiu uma pena imensa, um desejo invencível de aprisioná-lo nos braços. Começou a falar. Durante toda a tarde e toda a noite, esteve construindo um bom passado para aquele guerreiro, colocando nisso sua vasta experiência e a paixão que o desconhecido lhe despertara. Foi um longo discurso, pois ela desejou ofertar-lhe um destino de novela, tendo que inventar tudo, desde o nascimento dele até o dia presente, com sonhos, anseios e segredos, a vida de seus pais e irmãos, até a geografia e história de sua terra. Finalmente amanheceu e, às primeiras claridades do dia, ela comprovou que o cheiro da tristeza se esfumara. Suspirou, fechou os olhos, e ao sentir o espírito vazio como o de um recém nascido, compreendeu que na ânsia de satisfazê-lo, tinha-lhe entregue sua própria memória, não sabia mais o que era dela e quanto agora pertencia a ele, os dois passados haviam ficado enovelados em uma só trança. Ela penetrava até o fundo em sua própria história e não podia mais recolher as palavras, mas tampouco quis fazê-lo, e então entregou-se ao prazer de fundir-se com ele, na mesma história.
Isabel Allende em Eva Luna (1987, pp.300-301)

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

À meia-noite, pelo telefone

À meia-noite, pelo telefone,
conta-me que é fulva a mata do teu púbis.
Outras notícias
do corpo não quer dar, nem de seus gostos.
Fecha-se em copas:

"Se não vem depressa até aqui
nem eu posso correr à sua casa,
que seria de mim até o amanhecer?"
Concordo, calo-me.

Carlos Drummond de Andrade

O poeta Aprendiz

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Talvez a música mais linda da galáxia

Nada, Esta Espuma




Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco 
quero tanto os seios da sereia. 


Ana Cristina Cesar