segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Proteger o Natal





Dizem que na data de hoje
uma criança
com a estrela, o pássaro e o mistério na mão
prometeu um novo mundo.
Então, veio o rei e roubou sua palavra.
Pendurou em templos e abriu um banco.
Ainda que seja essa a história,
Mais de dois mil anos depois
nasce outra criança:
Cecília, Teo, Olívia, Samuel, Gabriela, Caetano, Luiza,
Bruno, Liz, Cleo, Eric, Antonio, João, Francisco
e tantas outras crianças.

É assim, que o amor protege os nossos sonhos.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Segundo consta



O mundo acabando,
podem ficar tranquilos.
Acaba voltando tudo aquilo.
Reconstruam tudo
segundo a planta dos meus versos.
Vento, eu disse como.
Nuvem, eu disse quando.
Sol, casa, rua,
reinos, ruínas, anos,
desse como éramos.
Amor, eu disso como.
E como era mesmo?


Paulo Leminski

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Matéria da Poesia


Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia

O homem que possui um pente
 e uma árvore
 serve para poesia

Terreno de 10x20, sujo de mato – os que
 nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia

Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia

As coisas que não levam a nada
 têm grande importância

Cada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimo tem seu lugar na poesia ou na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
 servem demais para poesia

As coisas que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
 e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
 serve para poesia

As coisas que os líquenes comem
- sapatos, adjetivos -
tem muita importância para os pulmões
da poesia

Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia

Os loucos de água e estandarte
servem demais.

O traste é ótimo.
O pobre – diabo é colosso

Tudo que explique
 o alicate cremoso
e o lodo das estrelas
serve demais da conta

Pessoas desimportantes
dão para poesia
 qualquer pessoa ou escada

Tudo que explique
a lagartixa de esteira
 e a laminação de sabiás
 é muito importante para a poesia

O que é bom para o lixo é bom para poesia

Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
sabe a destroços

As coisas jogadas fora
têm grande importância
 - como um homem jogado fora

Alías é também objeto de poesia
saber qual o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem nascerem
em sua boca as raízes da escória

As coisas sem importância são bens de poesia

Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
 ao poema, e as andorinhas de junho.

Manoel de Barros

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Lembrar-se do que nunca existiu

 
Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um esforço de "memória", como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva.
Clarice Lispector, "Para não Esquecer"

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Ao linotipista

 


Desculpe eu estar errando tanto na máquina. Primeiro é porque minha mão

direita foi queimada. Segundo, não sei por quê.

Agora um pedido: não me corrija. A pontuação é a respiração da frase, e minha

frase respira assim. E se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a

me respeitar.

Escrever é uma maldição.

Clarice Lispector


domingo, 9 de dezembro de 2012

A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.
Sophia de Mello Breyner Andresen
 

Amor

 
 


 Vamos brincar, amor? vamos jogar peteca
Vamos atrapalhar os outros, amor, vamos sair correndo
Vamos subir no elevador, vamos sofrer calmamente e sem precipitação?
Vamos sofrer, amor? males da alma, perigos
Dores de má fama íntimas como as chagas de Cristo
Vamos, amor? vamos tomar porre de absinto
Vamos tomar porre de coisa bem esquisita, vamos
Fingir que hoje é domingo, vamos ver

O afogado na praia, vamos correr atrás do batalhão?
Vamos, amor, tomar thé na Cavé com madame de Sevignée
Vamos roubar laranja, falar nome, vamos inventar
Vamos criar beijo novo, carinho novo, vamos visitar N. S. do Parto?
Vamos, amor? vamos nos persuadir imensamente dos acontecimentos
Vamos fazer neném dormir, botar ele no urinol
Vamos, amor?
Porque excessivamente grave é a Vida.
Vinicius de Moraes

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Certas palavras





Certas palavras não podem ser ditas
em qualquer lugar e hora qualquer.
Estritamente reservadas
para companheiros de confiança,
devem ser sacralmente pronunciadas
em tom muito especial
lá onde a polícia dos adultos
não adivinha nem alcança.
Entretanto são palavras simples:
definem
partes do corpo, movimentos, atos
do viver que só os grandes se permitem
e a nós é defendido por sentença
dos séculos.
E tudo é proibido. Então, falamos.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 2 de dezembro de 2012

Eu tão isósceles


Eu tão isósceles
Você ângulo
Hipóteses
Sobre o meu tesão

Teses sínteses
Antíteses
Vê bem onde pises
Pode ser meu coração


Paulo Leminski