quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Catacumbas


Somos argila, noite
onde os dedos se afundam,
hemorragia de espantoso silêncio
nas galerias do corpo.

O resto,
é pura perda
e transitória insônia.

Hélio Pellegrino

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Anedota búlgara

Era uma vez um czar naturalista
que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

pariso
novayorquizo
moscoviteio
sem sair do bar
só não levanto e vou embora
porque tem países
que eu nem chego a madagascar 

Paulo Leminski


domingo, 19 de fevereiro de 2012

Fantasia,
que é fantasia, por favor?
Roupa-estardalhaço, maquilagem-loucura?
Ou antes, e principalmente,
brinquedo sigiloso, tão íntimo,
tão do meu sangue e nervos e eu oculto em mim,
que ninguém percebe, e todos os dias
exibo na passarela sem espectadores?

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Carnaval Carioca

Agnes Toth
Eu mesmo... Eu mesmo Carnaval...
Eu te levava uns olhos novos
Para serem lapidados em mil sensações bonitas,
Meus lábios murmurejando de comoção assustada
Haviam de ter puríssimo destino...
É que sou poeta
E na banalidade larga dos meus cantos
Fundir-se-ão de mãos dadas alegrias e tristuras, bens e males,
Todas as coisas finitas
Em rondas aladas sobrenaturais.

Mario de Andrade  (Poema para Manuel Bandeira, 1923)

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Balada do Amor Perfeito


Lola Roig
Pelo pés das goiabeiras,
pelo braços das mangueiras,
pelas ervas fratricidas,
pelas pimentas ardidas,
fui me aflorando.

Pelos girassóis que comem
giestas de sol e somem,
por marias-sem-vergonha,
dos entretons de quem sonha
fui te aspirando.

Por surpresas balsaminas,
entre as ferrugens de Minas,
por tantas voltas lunárias,
tantas manhãs cineárias,
fui te esperando.

Por miosótis lacustres,
por teus cântaros ilustres,
pelos súbitos espantos
de teus olhos agapantos,
fui te encontrando.

Pelas estampas arcanas
do amor das flores humanas,
pelas legendas candentes
que trazemos nas sementes,
fui te avivando.

Me evadindo das molduras,
de minhas albas escuras,
pelas tuas sensitivas,
açucenas, sempre-vivas,
fui te virando.

Pela rosa e o resedá,
pelo trevo que não há,
pela torta linha reta
da cravina do poeta,
fui te levando.

Pelas frestas das lianas
de tuas crespas pestanas,
pela trança rebelada
sobre o paredão do nada,
fui te enredando.

Pelas braçadas de malvas,
pelas assembléias alvas
de teus dentes comovidos
pelo caule dos gemidos
fui te enflorando.

Pelas fímbrias de teu húmus,
pelos reclames dos sumos,
sobre as umbelas pequenas
de tuas tensas verbenas,
fui me plantando.

Por tuas arestas góticas,
pelas orquídeas eróticas,
por tuas hastes ossudas,
pelas ânforas carnudas,
fui te escalando.

Por teus pistilos eretos,
por teus acúleos secretos,
pelas úsneas clandestinas
das virilhas de boninas,
fui me criando.

Pelos favores mordentes
das ogivas redolentes,
pelo sereno das zínias,
pelos lábios de glicínias,
fui te sugando.

Pelas tardes de perfil,
pelos pasmados de abril,
pelos parques do que somos,
com seus bruscos cinamomos,
fui me espaçando.

Pelas violas do fim,
nas esquinas do jasmim,
pela chama dos encantos
de fugazes amarantos,
fui me apagando.

Afetando ares e mares
pelas mimosas vulgares
pelos fungos do meu mal,
do teu reino vegetal
fui me afastando.

Pelas gloxínias vivazes,
com seus labelos vorazes,
pelo flor que desata,
pela lélia purpurata,
fui me arrastando.

Pelas papoulas da cama,
que vão fumando quem ama,
pelas dúvidas rasteiras
de volúveis trepadeiras
fui te deixando.

Pelas brenhas, pelas damas
de uma noite, pelos dramas
das raízes retorcidas,
pelas sultanas cuspidas,
fui te olvidando.

Pelas atonalidades
das perpétuas, das saudades,
pelos goivos do meu peito,
pela luz do amor perfeito,
vou te buscando.

Paulo Mendes Campos

Satisfações


Xilografia - Samico

À primeira mirada pela janela ao despertar
volto a encontrar o velho livro
rostos entusiasmados
neve, a mudança das estações
o periódico,
o cão,
a dialética,
banhar-se, nadar
música antiga
sapatos cômodos
compreender
música nova
escrever, plantar
viajar
cantar
ser amável.


Bertolt Brecht

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Laura Phelipon

Entrar na Academia já entrei
mas ninguém me explica por que que essa torneira
aberta
neste silêncio de noite
parece poesia jorrando…
Sou bugre mesmo
me explica mesmo
me ensina modos de gente
me ensina a acompanhar um enterro de cabeça baixa
me explica por que que um olhar de piedade
cravado na condição humana
não brilha mais que anúncio luminoso?
Qual, sou bugre mesmo
só sei pensar na hora ruim
na hora do azar que espanta até a ave da saudade
Sou bugre mesmo
me explica mesmo:
se eu não sei parar o sangue, que que adianta
não ser imbecil ou borboleta?
Me explica porque penso naqueles moleques
como nos peixes
que deixava escapar do anzol
com o queixo arrebentado?
Qual, antes melhor fechar essa torneira, bugre velho…
Manoel de Barros

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Travelling

Tarde da noite recoloco a casa toda em seu lugar.
Guardo os papéis todos que sobraram.
Confirmo para mim a solidez dos cadeados.
Nunca mais te disse uma palavra.
Do alto da serra de Petrópolis,
com um chapéu de ponta e um regador,
Elizabeth reconfirmava, “Perder
é mais fácil que se pensa”.
Rasgo os papéis todos que sobraram.
“Os seus olhos pecam, mas seu corpo
não”,
dizia o tradutor preciso, simultâneo,
e suas mãos é que tremiam. ‘É perigoso”,
ria Carolina perita no papel Kodak.
A câmera em rasante viajava.
A voz em off nas montanhas, inextinguível
fogo domado da paixão, a voz
do espelho dos meus olhos,
negando-se a todas as viagens,
e a voz rascante da velocidade,
de todas três bebi um pouco.

Ana Cristina Cesar

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

O Luar Através dos Altos Ramos




O luar através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.
Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.

Alberto Caeiro, em "O Guardador de Rebanhos - Poema XXXV"
Heterónimo de Fernando Pessoa

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Contam de Clarice Lispector

Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.
Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o.
refazendo-o, de gol a gol.
Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar de morte?

João Cabral de Melo Neto

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Desapego


A vida vai depressa e devagar.
Mas a todo momento
penso que posso acabar.

Porque o bem da vida seria ter
mesmo no sofrimento
gosto de prazer.

Já não tenho vontade de falar
senão com árvores, vento,
estrelas, e águas do mar.

E isso pela certeza de saber
que nem ouvem meu lamento
nem me podem responder.

Cecília Meireles

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Improviso do mal da América


Grito imperioso de brancura em mim...

Éh coisa de minha terra, passados e formas de agora,
Éh ritmos de síncopa e cheiros lentos de sertão,
Varando contracorrente o mato impenetrável do meu ser...
Não me completam mais que um balanço de tango,
Que uma reza de indiano no templo de pedra,
Que a façanho do chin comunista guerreando,
Que prantina de piá, encastoado de neve, filho de lapão.

São ecos. Mesmos ecos com a mesma insistência filtrada
Que ritmos de síncopa e cheiro do mato meu.
Me sinto branco, fatalizadamente um ser de mundos que nunca vi.
Campeio na vida a jacumã que mude a direção destas igaras fatigadas
E faça tudo ir indo de rodada mansamente
Ao mesmo rolar de rio das aspirações e das pesquisas...
Não acho nada, quase nada, e meus ouvidos vão escutar amorosos

Outras vozes de outras falas de outras raças, mais formação, mais forçura.
Me sinto branco na curiosidade imperiosa de ser.

Lá fora o corpo de São Paulo escorre vida ao guampasso dos arranhacéus,
E dança na ambição compacta de dilúvios de penetras
Vão chegando italianos didáticos e nobres;
Vai chegando a falação barbuda de Unamuno
Emigrada pro quarto-de-hóspedes acolhedor da Sulamérica;
Bateladas de húngaros, búlgaros, russos se despejam na cidade...
Trazem vodca na sapiquá de veludo
Detestam caninha, detestam mandioca e pimenta,
Não dançam maxixe, nem dançam catira, nem sabem amar suspirado.

E de noite monótonos reunidos na mansarda, bancando conspiração,
As mulheres fumam feito chaminés sozinhas,
Os homens destilam vícios aldeões na catinga;
E como sempre entre eles tem sempre um que manda sempre em todos,
Tudo calou de sopetão, e no ar amulegado da noite que súa...
- Coro? Onde já se viu agora coro a quatro vozes, minha gente! -
São coros, coros ucranianos batidos ou místicos, Sehnsucht d'além-mar!
Home...Sweet home...Que sejam felizes aqui!

Mas eu não posso me sentir negro nem vermelho!
De certo que essas cores também tecem minha roupa arlequinal,
Mas eu não me sinto negro, mas eu não me sinto vermelho,
Me sinto só branco, relumeando caridade e acolhimento,
Purificado na revolta contra os brancos, as pátrias,
as guerras, as posses, as preguiças e ignorâncias!
Me sinto só branco agora, sem ar neste ar-livre da América!
Me sinto só branco, só branco em minha alma crivada de raças!

Mário de Andrade

A marcha

Aos marginais, chorões, bobos
e aos mortos
A minha declaração de amor.
Todos os meus ossos para a janta.

Torço para o mastro desemborcar
e que venham...chegando
(com zabumbas e xotes)
os condenados à terra seca
emprazar até as nuvens.

E se o general do mal tempo
evocar o fogo.
Darei o que tenho de posse:
a provocação dos poetas.

Se ainda assim a ordem for de arrancar os ventos da mão dos desatinados.
Insistir para que se interrompa até mesmo a viração.
Avante se marchará contra o impossível.
porque com os loucos não se bole não


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Pátria minha

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.
Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama…"

Vinicius de Moraes