domingo, 31 de março de 2013

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Subnutrido de beleza, meu cachorro-poema vai farejando poesia em tudo, pois nunca se sabe quanto tesouro andará desperdiçado por aí…
Quanto filhotinho de estrela atirado no lixo!


Mário Quintana

Para Além da Curva da Estrada



Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma. 


 Alberto Caeiro

quarta-feira, 27 de março de 2013

Sim





Sim.
Todos os poemas
São de amor
Pela rima,
Pelo ritmo,
Pelo brilho
Ou por alguém,
Alguma coisa
Que passava
Na hora
Em que a vida
Virava palavra.


Alice Ruiz

segunda-feira, 25 de março de 2013

Namorados

DancersAmong Us
 

 O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:
-Antônia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com sua cara.
A moça olhou de lado e esperou.
-Você não sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listrada?
A moça se lembrava:
-A gente fica olhando...
A meninice brincou de novo nos olhos dela.
O rapaz prosseguiu com muita doçura:
-Antônia, você parece uma lagarta listrada.
A moça arregalou os olhos, fez exclamações.
O rapaz concluiu:
-Antônia, você é engraçada! Você parece louca.
 
Manuel Bandeira

domingo, 24 de março de 2013

No instante do entanto

Lakhsmita Indira



No instante do entanto
Diga minha poesia
E esqueça-me se for capaz
Siga e depois me diga
Quem ganhou aquela briga
Entre o quanto e o tanto faz


Paulo Leminski

Nunca quis ser



Nunca quis ser
Freguês distinto
Pedindo isso e aquilo
Vinho tinto
Obrigado
Hasta la vista

Queria entrar
Com os dois pés
No peito dos porteiros
Dizendo pro espelho
- cala a boca
E pro relógio
- abaixo os ponteiros


Paulo Leminski

domingo, 17 de março de 2013

Interditos

Tang Yau Hoong

Queria você de volta.
Pedir para você me abraçar.
Sentar com você no terraço.
Amar e amar e amar.

Queria pedir desculpas,
Dizer que eu não soube esperar,
Adiantei o desejo e fiz você se afastar.

Queria me ver em teus versos,
escutar você me evocar,
nas tardes que já se passaram e nas tardes que vão chegar.

Queria saber da sua vida,
Ao teu lado sonhar.
Chover nos nossos desertos e assim poder descansar.

Queria que você entendesse,
eu sei que não devo chamar
Mas basta estender o teu braço

e contigo irei encontrar.

sábado, 16 de março de 2013

Merda e ouro



Merda é veneno.
No entanto, não há nada
que seja mais bonito
que uma bela cagada.
Cagam ricos, cagam padres,
cagam reis e cagam fadas.
Não há merda que se compare
à bosta da pessoa amada.

Paulo Leminski

Por um Lindésimo de segundo


tudo em mim
anda a mil
tudo assim
tudo por um fio
tudo feito
tudo estivesse no cio
tudo pisando macio
tudo psiu

tudo em minha volta
anda às tontas
como se as coisas
fossem todas
afinal de contas


Paulo Leminski  -  livro Distraídos Venceremos

quinta-feira, 14 de março de 2013

Oração do verdadeiro Papa



Para Dom Helder Câmara

Eles nos envenenam, recupere sua humanidade.
Desligue a TV, amasse a escola, desconfie do sagrado,
e assim ocupe-se em se tornar o mais espoliado dos homens.

Não tenha emprego e conheça sua dignidade.
Rebaixe sua cor e veja quem lhe cabe ser.
Seja mulher diante do verbo e do braço violentos.
Sinta-se jovem, apenas como um projeto... Se futuro... um futuro irascível.
Ame o igual, mas ame com medo.
Tenha negado o seu país e procure caminhar.
Sem terra, encare as cercas.
Aviste a prisão e aguarde a pena de morte.
More ao sul do “berço”, ao extremo do centro, em cima do morro e considere falar.
Na moral religiosa tutele seu corpo e seja violado.

Organize-se coletivamente e escute os umbigos, a polícia e o judiciário.
Esteja doente e aceite o desprezo.
Seja criança, na lei dos adultos.
Conheça a tortura e não a justiça.

De várias maneiras podemos rezar, mas a questão é mudar o mundo..




quarta-feira, 13 de março de 2013

Mar Grosso

Brian Oldham


O Mar se desprende,

O dia da mudança chegou.

Será preciso muitas gavetas para guardar a moça da praia,

E apenas um bloco de notas para contar a história dos peixes.



- Trago comigo a vontade de plantar.

- Trago comigo um bocado de sol... Mas a água é salgada.



- Trago comigo uma mulher.

- Não entendo, repita.., preciso de seu espelho.



- Trago comigo solidão.

- Trago comigo outras espécie de solidão e esse cardume de sereias.



- Trago comigo meus versos.

- Trago comigo meu arpão.

Enredos curtos.



Pode significar veneno, mas pode significar também remédio.

Não importa.

Traga sempre consigo sua inocência. Construa lá sua casa.


domingo, 10 de março de 2013

Memorial para os setenta e três picos

Christoph Meyer

 Ninguém dá o que não tem por dentro.

Eu tenho montanhas....
montanhas...

Desde nascença,

picos mais assim como 
o Fitz Roy

do que como 
o Pão de açúcar.

A Coisa Pública e a Privada





Entre a coisa pública
e a privada
achou-se a República
assentada.

Uns queriam privar
da coisa pública,
outros queriam provar
da privada,
conquanto, é claro,
que, na provação,
a privada, publicamente,
parecesse perfumada.

Dessa luta intestina
entre a gula pública e a privada
a República
acabou desarranjada
e já ninguém sabia
quando era a empresa pública
privada pública
ou
pública privada.

Assim ia a rês pública: avacalhada
uma rês pública: charqueada
uma rês pública, publicamente
corneada, que por mais
que lhe batessem na cangalha
mais vivia escangalhada.

Qual o jeito?
Submetê-la a um jejum?
Ou dar purgante à esganada
que embora a prisão de ventre
tinha a pança inflacionada?

O que fazer?
Privatizar a privada
onde estão todos
publicamente assentados?
Ou publicar, de uma penada,
que a coisa pública
se deixar de ser privada
pode ser recuperada?

— Sim, é preciso sanear,
desinfetar a coisa pública,
limpar a verba malversada,
dar descarga na privada.

Enfim, acabar com a alquimia
de empresas públicas-privadas
que querem ver suas fezes
em ouro alheio transformadas.


SANT'ANNA, Affonso Romano de. A poesia possível. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. Poema integrante da série Aprendizagem de História











Que País É Este?




Tracy Emin


1
Uma coisa é um país,
outra um ajuntamento.

Uma coisa é um país,
outra um regimento.

Uma coisa é um país,
outra o confinamento.

Mas já soube datas, guerras, estátuas
usei caderno "Avante"
— e desfilei de tênis para o ditador.
Vinha de um "berço esplêndido" para um "futuro radioso"
e éramos maiores em tudo
— discursando rios e pretensão.

Uma coisa é um país,
outra um fingimento.

Uma coisa é um país,
outra um monumento.

Uma coisa é um país,
outra o aviltamento.

(...)

2

Há 500 anos caçamos índios e operários,
há 500 anos queimamos árvores e hereges,
há 500 anos estupramos livros e mulheres,
há 500 anos sugamos negras e aluguéis.

Há 500 anos dizemos:
que o futuro a Deus pertence,
que Deus nasceu na Bahia,
que São Jorge é que é guerreiro,
que do amanhã ninguém sabe,
que conosco ninguém pode,
que quem não pode sacode.

Há 500 anos somos pretos de alma branca,
não somos nada violentos,
quem espera sempre alcança
e quem não chora não mama
ou quem tem padrinho vivo
não morre nunca pagão.

Há 500 anos propalamos:
este é o país do futuro,
antes tarde do que nunca,
mais vale quem Deus ajuda
e a Europa ainda se curva.

Há 500 anos
somos raposas verdes
colhendo uvas com os olhos,

semeamos promessa e vento
com tempestades na boca,

sonhamos a paz da Suécia
com suíças militares,

vendemos siris na estrada
e papagaios em Haia,

senzalamos casas-grandes
e sobradamos mocambos,

bebemos cachaça e brahma
joaquim silvério e derrama,

a polícia nos dispersa
e o futebol nos conclama,

cantamos salve-rainhas
e salve-se quem puder,

pois Jesus Cristo nos mata
num carnaval de mulatas.

(...)


Publicado no livro Que país é este? e outros poemas (1980).

In: SANT'ANNA, Affonso Romano de. A poesia possível. Rio de Janeiro: Rocco, 198


quarta-feira, 6 de março de 2013

Caiu um Forte





Quando um comandante cai, 
É preciso chorar como a um parente próximo.
É preciso compartilhar sua voz
É preciso consolar a humanidade.
Para o povo da Venezuela... 
sua vontade...
Nada menos do que sua vontade.

segunda-feira, 4 de março de 2013




Devemos ser como o rio,
Que é providência da terra:
Bendito aquele que é forte,
E desconhece o rancor,
E, em vez de servir a morte,
Ama a Vida, e serve o Amor!

Olavo Bilac