segunda-feira, 31 de agosto de 2009


PÊSSEGO

Só de ouvir a voz de Albertine entrava em orgasmo.
Se diz que:
O olhar de voyeur tem condições de phalo (possui o que vê).
Mas é pelo tato
Que a fonte do amor se abre.
Apalpar desabrocha o talo.
O tato é mais que o ver
É mais que o ouvir
É mais que o cheirar.
É pelo beijo que o amor se edifica.
É no calor da boca
Que o alarme da carne grita.
E se abre docemente
Como um pêssego de Deus

Proust
Nathalie Daoust
Antes de acordar ela fez alguns barulhos desconhecidos, mesmo após tantas noites compartilhadas. Chamou-me atenção, o que acontece com essa mulher? Ao despertar, lança um olhar tênue que pouco condiz aos olhos mansos de todas as manhãs. Levanta-se lenta, muda, triste. Aproxima-se de nossa janela ampla e verde e, finalmente, faz o primeiro gesto familiar. Sem vertigem senta sobre o parapeito, encolhe as pernas e esconde os pés sobre a camisola longa de algodão. Magnífico reconhecer, Maria. Maria que tem ventas e frio nos pés. Aproximei-me e a abracei. Ela permaneceu estática e apenas me disse que teve um sonho ruim. A partir daquele momento reconheceria Maria em todos os gestos e palavras. Seus suspiros e pausas curtas. Seus olhos oscilantes de concentração de coruja. Sua sede.
Contou-me do casamento no fundo do mar. Das prendas sempre em número ímpar resgatadas das víceras de peixes. Do véu da noiva cosido de pele de bicho marinho não identificado. Talvez água-viva, quem sabe tentáculos de anêmona.
Quando havia tempo fazia parte do nosso acordo matutino a história de seus sonhos e isso já enchia os primeiros minutos do meu dia de bichos esquisitos: peixes encantados, ovelhas prenhas, mulheres pássaros, mergulhos profundos, dores de coração. Mulher estranha, mas como era bom começar o dia assim. Em mim ela era meus sonhos de cachoeira.
Soprava em meus olhos e me dizia que a vida era delírio, vivíamos em desatino e um dia talvez não nos reconheceríamos no meio da escadaria. Sentiria saudades. Então, me beijava a boca de um jeito tão delicioso e carnudo, que éramos sempre fogo e nunca cinza.
Dizia-me que acordar era como morrer e que sempre era mais feliz no sono. Quantas vezes me disse Maria isso? Quantas vezes escutei seus sonhos? Velhos tons.
Visão compartilhada, calou-se. Virou-se para a vista da janela e imediatamente éramos um casal normal. Hora de trabalhar. O outro que se levanta e vai ainda arrastando os pés ao banheiro. A face no espelho, a água que escorre na pia e no chuveiro.
Mas Maria permaneceu ali pousada e eu sabia, sempre sabia: estava chorando. Disse-me que em seu sonho morava em uma casa antiga onde no porão se guardavam peixes. Cabia a ela zelar pelo faqueiro de prata da velha da casa, exposto em uma espécie de cristaleira de meio metro de altura. Por que chorava? Não importa, sempre chorava. Disse-me que ali no porão se sentia mal: ou pouco amada ou pouco entendida ou pouco fingida ou com dores no corpo.
Ultimamente, acometia-lhe dores no pescoço que causavam uma ligeira sensação de sufocamento. Dizia que lhe tiravam a exata percepção das coisas, seus juízos estavam deslocados nove centímetros.
Aquela era Maria. Maria que só eu conhecia. Como, apesar e em pesar, eu a amava em seus delírios. Maria a mais correta, a mais certinha, era a mulher do fim do mundo. A que jamais beberia das feridas do homem na cruz.
Lambi suas lágrimas, pois sabia que isso lhe agradava e sorrimos juntos. Ela passou seus dedos em meus cabelos - adorava sentir meus pelos sobre sua tez – e deu um saltinho da janela com a roda dos seus braços no meu pescoço e as pontas de seus pés sobre os meus. Tudo totalmente, Maria.

Eu aqui me despeço




Eu me despeço.

Volto à minha casa, em meus sonhos.

Volto à Patagônia,

aonde o vento golpeia os estábulos e salpica de frescor o Oceano.

Sou nada mais que um poeta: amo a todos, ando errante pelo mundo que amo.
Em minha pátria, prende-se mineiros e os soldados mandam mais que os juízes.
Entretanto, amo até mesmo as raízes de meu pequeno país frio.

Se tivesse que morrer mil vezes, ali quero morrer.

Se tivesse que nascer mil vezes, ali quero nascer.

Perto da araucária selvagem,
do vendaval que vem do sul,
das campanas recém compradas.
Que ninguém pense em mim.
Pensemos em toda a terra, golpeando com amor a mesa.
Não quero que volte o sangue... a molhar o pão, os feijões, a música:

quero que venha comigo o mineiro, a criança, o advogado, o marinheiro, o fabricante de bonecas.
Que entremos no cinema e bebamos o vinho mais tinto.

Eu não vim para resolver nada.
Vim aqui para cantar e quero que cantes comigo.


Pablo Neruda

Plena mulher

Plena mulher,
maçã carnal,
lua quente,
espesso aroma de algas,
lodo e luz pisados,
que obscura claridade se abre entre tuas colunas?
que antiga noite o homem toca com seus sentidos?
Ai, amar é uma viagem com água e com estrelas,
com ar opresso e bruscas tempestades de farinha:
amar é um combate de relâmpagos
e dois corpos por um só mel derrotados.
Beijo a beijo percorro teu pequeno infinito,
tuas margens,
teus rios,
teus povoados pequenos,
e o fogo genital transformado em delícia corre pelos tênues caminhos do sangue
até precipitar-se como um cravo noturno,
até ser e não ser senão na sombra de um raio.

Pablo Neruda

domingo, 30 de agosto de 2009



MÍMESIS

















Quando esqueço as grandes assombrações
e beijo teu regaço escuro,
tua pequena pele surpreendente
temo que o meu rosto se desfigure
e volte a imitar os mistérios da noite
e a trágica história do malabarista

Ana Cristina Cesar

Qual é o preço da experiência?
Os homens a compram com uma canção?
Adquirem sabedoria dançando nas ruas?
Não, ela é comprada pelo preço
De tudo que um homem possui, sua casa, sua esposa, seus filhos.
A sabedoria é vendida num mercado sombrio onde ninguém vem comprar,
E no campo infecundo que o fazendeiro ara em vão por seu pão.
É fácil triunfar sob o sol do verão
E na colheita cantar na carroça cheia de grão.
É fácil falar de prudência aos aflitos,
Falar das leis da prudência ao andarilho sem teto,
Ouvir o grito faminto do corvo na estação invernal
Quando o sangue vermelho mistura-se ao vinho e ao tutano do cordeiro
É tão fácil sorrir diante da ira da natureza
Ouvir o uivo do cão diante da porta no inverno, e o boi a mugir no matadouro;
Ver um deus em cada brisa e uma bênção em cada tempestade.
Ouvir o som do amor no raio que arrasa a casa do inimigo;
Rejubilar-se diante da praga que cobre seu campo, e da doença que ceifa seus filhos,
Enquanto nossas oliveiras e nosso vinho cantam e riem diante da porta,
e nossos filhos nos trazem frutas e flores.
Então o lamento e a dor estão quase esquecidos,
bem como o escravo que gira o moinho,
E o cativo acorrentado, o pobre prisioneiro, e o soldado no campo de batalha
Quando os ossos rompidos deixam-no gemendo à espera da morte feliz.
É fácil rejubilar-se sob a tenda da prosperidade:
Eu poderia cantar e me rejubilar deste modo: mas eu não sou assim.


William Blake

VALSA

Alice Brill
Fez tanto luar que eu pensei nos teus olhos antigos e nas tuas antigas palavras
O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos
que tornei a viver contigo enquanto o vento passava.
Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto
e modelou tua voz entre as algas
Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
Coitado de quem pôs sua esperança
nas praias fora do mundo...
Os ares fogem,
viram-se as águas,
mesmo as pedras, com o tempo, mudam.


Fernando Pessoa

sábado, 29 de agosto de 2009


A partir do primeiro ímpeto é preciso retomar o projeto.
Toda a família de bandidos se reunir e celebrar a indiferença, a insanidade, o 4X3 de virada. Chorar no quarto do patriarca de coco quebrado. Em seguida na casa de cachorro da infeliz senhora. E finalmente entre os brinquedos de CeciBum. De definitivo só há a incerteza de sentidos rubros a respeito da vida e a forçosa sensação dos destroços muito mais acres que sedosos. Mesmo assim não se deseja outra sepultura e não se esquece de insistir no projeto de fuga.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009


Sinto-me como a menina púbere em seu primeiro sutiã. Anda encurvada na intenção que a lua nova não seja notada. Disfarça, mas se orgulha ao despojar as vestes dos primeiros tempos. Tanto o que aprender, espanta. Mas procuro me fiar que retidão de caráter e coração serão minhas vestes contra o desamor. Em apenas uma semana perdi o sono e retive a coluna. Ensinamento crucial: não levar para casa o desamor. Deixá-lo na soleira junto com os vasos de plantas. Fiar-me que o jeito será dado. Se não se deu é porque não se assegurou o tempo preciso. Lembrar, de anotar na porta da geladeira: repetir este ensinamento como um mantra. Buscar a força na força, a beleza na beleza, a cor na cor. Celebrar a vida e as possibilidades. Aqui dentro do coração o tom é de borboleta. Ele assegura as doses homeopáticas de lucidez que preciso para exercer a função de existir. Medo, solidão, angústias, tristeza, dor... são do fundo da xícara. Me fazem provar o cheiro da coragem, a textura da comunhão, o sabor da serenidade, os tons da felicidade. São todos irmãos e precisam ser afinados, deixados também à soleira da porta junto aos vasos de plantas. Neste dia verde, experimento a alegria e a solitude. Compartilho com as formigas a novidade. Senti certa falta do passado, mas foi sutil. Foram serenas as ondas do dia, mesmo que pouco produtivas no sentido laborial do sentido. Senti mais saudades do futuro. Você bateu em mim e não colou. Talvez não era certa a cor do cabelo e você continuou olhando a alvorada. Então, vou dormi só e com frio, que hoje o dia se fez molhado e gelado. O calor está aqui dentro do coração.



Era manhã de setembro
e
ela me beijava o membro
Aviões e nuvens passavam
coros negros rebramiam
ela me beijava o membro
O meu tempo de menino
o meu tempo ainda futuro
cruzados floriam junto
Ela me beijava o membro
Um passarinho cantava,
bem dentro da árvore, dentro
da terra, de mim, da morte
Morte e primavera em rama
disputavam-se a água clara
água que dobrava a sede
Ela me beijava o membro
Tudo que eu tivera sido
quanto me fora defeso
já não formava sentido
Somente a rosa crispada
o talo ardente, uma flama
aquele êxtase na grama
Ela me beijava o membro
Dos beijos era o mais casto
na pureza despojada
que é própria das coisas dadas
Nem era preito de escrava
enrodilhada na sombra
mas presente de rainha
tornando-se coisa minha
circulando-me no sangue
e doce e lento e erradio
como beijara uma santa
no mais divino transporte
e num solente arrepio
beijava beijava o membro
Pensando nos outros homens
eu tinha pena de todos
aprisionados no mundo
Meu império se estendia
por toda a praia deserta
e a cada sentido alerta
Ela me beijava o membro
O capítulo do ser
o mistério de existir
o desencontro de amar
eram tudo ondas caladas
morrendo num cais longínquo
e uma cidade se erguia
radiante de pedreiras
e de ódios apaziguados
e o espasmo vinha na brisa
para consigo furtar-me
se antes não me desfolhava
como um cabelo se alisa
e me tornava disperso
todo em círculos concêntricos
na fumaça do universo
Beijava o membro
beijava
e se morria beijando
a renascer em setembro

Carlos Drummond de Andrade

Eu escrevo com a minha lingua úmida
A palavra milagrosa em seu corpo,
E a palavra abre o segredo de suas carnes
E dá aos meus dentes o mundo quente e vermelho de suas entranhas.
Você sorri,
Você sorri suavemente,
E eu bebo o sangue de que são feitos os seus sorrisos
E deixo que seus olhos brinquem em baixo de minha língua como grandes balas de mel
Antes que rolem pela ingreme ladeira de minha faringe
E iluminem o mundo turvo do meu estômago.
Eu me levanto em seguida
E dou um sonoro arroto.
Limpo o sangue de meus lábios com seus cabelos
E jogo fora o que resta de você,
antes que apodreça.
Depois vou devagar e atento pela floresta,
Pelas ruas,
Pensando no jantar.


ABEL SILVA

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Os Três Mal-Amados

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.


João Cabral de Melo Neto

Fagulhas

Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.
Eu queria rir, chorar,
ou pelo menos sorrir
com a mesma leveza com que
os ares me beijavam.
Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça,
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando.
Eu queria até mesmo
sabe ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.
Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.
Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.
Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio.
Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las.
Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.
*
Ana Cristina Cesar

terça-feira, 25 de agosto de 2009


Tem na boca um mistério impossível de exprimir.
Quatro letras é tão pouco.
Um corpo, uma vida, um tempo tão gris.
Mesmo que se revelassem a distância de todas as estrelas,
a casa dos deuses mais tímidos
ou a anatomia do coração cativo das mães
ainda seria ralo frente a alegria do vislumbre de seus verdes olhos.
Não amo sua voz e seu verbo.
Nem os procuro entre as ruas corridas desta cidade de milhões de habitantes.
É a fantasia da sua serenidade que reparte meus desejos de sono.
Como amo tanto, não amo e sou livre e cativo.
Assim, posso continuar te querendo durante todas as horas deste corpo e sair gritando segredos por ai.
Tua mão na minha mão, minha mão junto a sua em todos os cantos.E este canto no início da noite insone te chamando: Vem...

Drogas lentas

Noites transversais de todos os meus sonhos que restaram. Encerra no olho um gesto indecifrável que faz calar o homem e chorar a moça. Ela realmente nunca entendeu nada. Nem pela manhã ou muito menos no meio da madrugada etílica. Queria te explicar tudo isso. Assim, talvez ela se aquiete e durma menos. Mas minha saliva secou no meio da frase e nessa fração de segundo ela sorriu e fugiu. Correu veloz por entre os musgos corados da noite e me deixou de garganta seca no meio de um bar sujo da cidade de minha memória. Também não sei porque eu não choro e digo até. Ela não volta? Ela não morre? Ela não chupa meus dedos? Sempre. Então, poeta de poemas sujos, deixa o ano invadir as paredes de seu cérebro. Agarra as gazelas douradas do Rio de Janeiro e lambe o bico de seus seios deliciosos. Que ela queime de todas as injúrias mal entendidas de seu espírito masculino. Melhor é aceitar a vida e seu cansaço. Acalentá-la em meus braços nos poucos instantes em que me permitir. Querida, me faça forte para acender mais um dia das suas loucas horas. Deixo o beijo de baixo da porta, até, aliás, drogas lentas vão guardadas entre as páginas do seu livro de cabeceira.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Quando escrevo, repito o que já vivi antes.
E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.
Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco.
Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem.
Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como o sofrimento dos homens.

João Guimarães Rosa

A estranha vida banal

Houve uma época em que eu pensava que as pessoas deviam ter um gatilho na garganta: quando pronunciasse — eu te amo —, mentindo, o gatilho disparava e elas explodiam. Era uma defesa intolerante contra os levianos e que refletia sem dúvida uma enorme insegurança de seu inventor. Insegurança e inexperiência. Com o passar dos anos a idéia foi abandonada, a vida revelou-me sua complexidade, suas nuanças. Aprendi que não é tão fácil dizer eu te amo sem pelo menos achar que ama e, quando a pessoa mente, a outra percebe, e se não percebe é porque não quer perceber, isto é: quer acreditar na mentira. Claro, tem gente que quer ouvir essa expressão mesmo sabendo que é mentira. O mentiroso, nesses casos, não merece punição alguma.
Por aí já se vê como esse negócio de amor é complicado e de contornos imprecisos. Pode-se dizer, no entanto, que o amor é um sentimento radical — falo do amor-paixão — e é isso que aumenta a complicação. Como pode uma coisa ambígua e duvidosa ganhar a fúria das tempestades? Mas essa é a natureza do amor, comparável à do vento: fluido e arrasador. É como o vento, também às vezes doce, brando, claro, bailando alegre em torno de seu oculto núcleo de fogo.
O amor é, portanto, na sua origem, liberação e aventura. Por definição, anti-burguês. O próprio da vida burguesa não é o amor, é o casamento, que é o amor institucionalizado, disciplinado, integrado na sociedade. O casamento é um contrato: duas pessoas se conhecem, se gostam, se sentem atraídas uma pela outra e decidem viver juntas. Isso poderia ser uma Coisa simples, mas não é, pois há que se inserir na ordem social, definir direitos e deveres perante os homens e até perante Deus. Carimbado e abençoado, o novo casal inicia sua vida entre beijos e sorrisos. E risos e risinhos dos maledicentes. Por maior que tenha sido a paixão inicial, o impulso que os levou à pretoria ou ao altar (ou a ambos), a simples assinatura do contrato já muda tudo. Com o casamento o amor sai do marginalismo, da atmosfera romântica que o envolvia, para entrar nos trilhos da institucionalidade. Torna-se grave. Agora é construir um lar, gerar filhos, criá-los, educá-los até que, adultos, abandonem a casa para fazer sua própria vida. Ou seja: se corre tudo bem, corre tudo mal. Mas, não radicalizemos: há exceções — e dessas exceções vive a nossa irrenunciável esperança.
Conheci uma mulher que costumava dizer: não há amor que resista ao tanque de lavar (ou à máquina, mesmo), ao espanador e ao bife com fritas. Ela possivelmente exagerava, mas com razão, porque tinha uns olhos ávidos e brilhantes e um coração ansioso. Ouvia o vento rumorejar nas árvores do parque, à tarde incendiando as nuvens e imaginava quanta vida, quanta aventura estaria se desenrolando naquele momento nos bares, nos cafés, nos bairros distantes. À sua volta certamente não acontecia nada: as pessoas em suas respectivas casas estavam apenas morando, sofrendo uma vida igual à sua. Essa inquietação bovariana prepara o caminho da aventura, que nem sempre acontece. Mas dificilmente deixa de acontecer. Pode não acontecer a aventura sonhada, o amor louco, o sonho que arrebata e funda o paraíso na terra. Acontece o vulgar adultério - o assim chamado -, que é quase sempre decepcionante, condenado, amargo e que se transforma numa espécie de vingança contra a mediocridade da vida. É como uma droga que se toma para curar a ansiedade e reajustar-se ao status quo. Estou curada, ela então se diz — e volta ao bife com fritas.
Mas às vezes não é assim. Às vezes o sonho vem, baixa das nuvens em fogo e pousa aos teus pés um candelabro cintilante. Dura uma tarde? Uma semana? Um mês? Pode durar um ano, dois até, desde que as dificuldades sejam de proporção suficiente para manter vivo o desafio e não tão duras que acovardem os amantes. Para isso, o fundamental é saber que tudo vai acabar. O verdadeiro amor é suicida. O amor, para atingir a ignição máxima, a entrega total, deve estar condenado: a consciência da precariedade da relação possibilita mergulhar nela de corpo e alma, vivê-la enquanto morre e morrê-la enquanto vive, como numa desvairada montanha-russa, até que, de repente, acaba. E é necessário que acabe como começou, de golpe, cortado rente na carne, entre soluços, querendo e não querendo que acabe, pois o espírito humano não comporta tanta realidade, como falou um poeta maior. E enxugados os olhos, aberta a janela, lá estão as mesmas nuvens rolando lentas e sem barulho pelo céu deserto de anjos. O alívio se confunde com o vazio, e você agora prefere morrer.
A barra é pesada. Quem conheceu o delírio dificilmente se habitua à antiga banalidade. Foi Gogol, no Inspetor Geral quem captou a decepção desse despertar. O falso inspetor mergulhara na fascinante impostura que lhe possibilitou uma vida de sonho: homenagens, bajulações, dinheiro e até o amor da mulher e da filha do prefeito. Eis senão quando chega o criado, trazendo-lhe o chapéu e o capote ordinário, signos da sua vida real, e lhe diz que está na hora de ir-se pois o verdadeiro inspetor está para chegar. Ele se assusta: mas então está tUdo acabado? Não era verdade o sonho? E assim é: a mais delirante paixão, terminada, deixa esse sabor de impostura na boca, como se a felicidade não pudesse ser verdade. E no entanto o foi, e tanto que é impossível continuar vivendo agora, sem ela, normalmente. Ou, como diz Chico Buarque: sofrendo normalmente.
Evaporado o fantasma, reaparece em sua banal realidade o guarda­roupa, a cômoda, a camisa usada na cadeira, os chinelos. E tudo impregnado da ausência do sonho, que é agora uma agulha escondida em cada objeto, e te fere, inesperadamente, quando abres a gaveta, o livro. E te fere não porque ali esteja o sonho ainda, mas exatamente porque já não está: esteve. Sais para o trabalho, que é preciso esquecer, afundar no dia-a-dia, na rotina do dia, tolerar o passar das horas, a conversa burra, o cafezinho, as notícias do jornal. Edifícios, ruas, avenidas, lojas, cinema, aeroportos, ônibus, carrocinhas de sorvete: o mundo é um incomensurável amontoado de inutilidades. E de repente o táxi que te leva por uma rua onde a memória do sonho paira como um perfume. Que fazer? Desviar-se dessas ruas, ocultar os objetos ou, pelo contrário, expor-se a tudo, sofrer tudo de uma vez e habituar-­se? Mais dia menos dia toda a lembrança se apaga e te surpreendes gargalhando, a vida vibrando outra vez, nova, na garganta, sem culpa nem desculpa. E chegas a pensar: quantas manhãs como esta perdi burramente! O amor é uma doença como outra qualquer.
E é verdade. Uma doença ou pelo menos uma anormalidade. Como pode acontecer que, subitamente, num mundo cheio de pessoas, alguém meta na cabeça que só existe fulano ou fulana, que é impossível viver sem essa pessoa? E reparando bem, tirando o rosto que era lindo, o corpo não era lá essas coisas... Na cama era regular, mas no papo um saco, e mentia, dizia tolices, e pensar que quase morro!... Isso dizes agora, comendo um bife com fritas diante do espetáculo vesperal dos cúmulos e nimbos. Em paz com a vida. Ou não.

Ferreira Gullar

Minha Boemia

Eu caminhava, as mãos soltas nos bolsos gastos;
O meu paletó não era bem o ideal;
Ia sob o céu, Musa! Teu amante leal;
Ah! E sonhava mil amores insensatos
Minha única calça tinha um largo furo.
Pequeno Polegar, eu tecia no percurso
Um rosário de rimas. A Grande Ursa,
O meu albergue, brilhava no céu escuro.
Sentado na sargeta, só, eu a ouvia
Nessa noite de setembro em que sentia
O odor das rosas, que vinho vigoroso!
Ali, entre inúmeros ombros fantásticos,
Rimava com a débil lira dos elásticos
De meus sapatos, e o coração doloroso!

Rimbaud




 He who binds to himself a joy
Does the winged life destroy;
but he who kisses the joy as it flies
Lives in eternity's sun rise.


To see the world in a grain of sand,
and to see heaven in a wild flower,
hold infinity in the palm of your hands,
and eternity in an hour.

William Blake



sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Simpatia sem contra indicações.
Recomendações de doses econômicas de lucidez.
Acorda e faz a barba.
Larga displicente o fio dental na mesa de tampo de vidro ao lado do sofá.
E esta é a parte do recheio do sanduíche da vida.
Surpresas veladas boiando no prato de qualquer planta.
O tempo se apressa e este é o melhor momento.
Leitor derramado.
Soberano o arco-íris que recebe todos os meus sonhos de você.
Nossa casa são flores e frutas na comunhão de nossas bocas.
Nossas cabeças, miúdas estrelas no abraço encaixe de nossos corpos.
A gente barro entre os dedos,
Sol de janela,
Sete noites no sonho bom do amor.
Poucas palavras talvez tragam você.
Eu mesma nesta semente irrigada do meu encontro.
Preciso o que para chamar você?
Silêncio?
Espaço?
Movimento?
_______ Sim.
Meu coração na tua mão.
Vem.
É tempo de beber da água no ventre da mulher.

Sobre el vientre rojo de la ciudad

Será o poeta um fingidor?
Como nem ele alcança a necessária medida dos nervos?
Será que imagina suas lágrimas ou enlouquece?
Respostas são bem vindas.
Eu não aguento e as procuro em Pessoa.
Mas ele está dormindo. Não responde. Ou não me escuta.
Provavelmente, finge, como o bom poeta que é.
Horas escuras desta única noite que se revela.
Adiantando os olhos ao longe parece que se cala o cerrado.
Enquanto que a vista, nati-ausente, desbota o mato, bicho e pedras.
Morto estará o cerrado ou este corpo parado?
Ninguém responde. Ninguém nunca responde.
Também não há palavras exatas que contentem respostas tolas a bilhões de orelhas e olhos.
Nunca basta o chão e o coração.
Sempre é preciso mais lenha para queimar o alimento e esquentar a casa.
Não deve faltar infinita água para banhar a faringe e a calçada.
Moeda que não é pão.
Mas nesta noite insone parece que algo atinge o canto esquerdo do peito de uma única criança.
Calada, ela sente que talvez haja esperança para aquele carvoeiro jurado de frio machado
ou
para aquelas pedras cansadas na beirola do rio.
Quem sabe estas horas escuras não findem
ou
não nasçam mais calangos, chichás e micróbios.
Assim, rompendo uma antiga aliança
faz-se desta noite uma eterna noite
Um não ser mais de um sempre.
Quem sabe, assim, como crianças voltemos para cama
e descansemos um pouco.


Alice continuou:


“Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para sair daqui?”

“Isso depende bastante de onde você quer chegar”, disse o Gato.


“O lugar não me importa muito...”, disse Alice.

“Então não importa que caminho você vai tomar”, disse o Gato.

“...desde que eu chegue a algum lugar”, acrescentou Alice em forma de explicação.

“Oh, você vai certamente chegar a algum lugar”, disse o Gato, “se caminhar bastante”.
(...)

"Mas eu não quero me encontrar com gente louca", observou Alice.

" Você não pode evitar isso", replicou o gato.

"Todos nós aqui somos loucos. Eu sou louco, você é louca".

"Como você sabe que eu sou louca?" indagou Alice.

"Deve ser", disse o gato, "Ou não estaria aqui".

terça-feira, 18 de agosto de 2009



Deus disse: vou ajeitar você a um dom.

Vou pertencer você para uma árvore.

E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.

Sei que a voz das águias tem sotaque azul.

Sei botar cílio nos silêncios.

Para encontrar o azul eu uso pássaros.

Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.

Quero o feitiço das palavras.


Manoel de Barros

sábado, 15 de agosto de 2009

Josef Hoflehner
Caminho de Pedra e Cerrado
Começa na estrada de ladeira
Depois na casa Calunga
Banha no abismo e prossegue
Candombá
Carvoeiro
Jatobá
Chapéu de Coro
Canela d'Ema,
tanto mais torto
tanto mais curto.

Até a vista avistar
a janela de cachoeira
Salto do garimpão solapa
a água nas pedras
e nasce a melindrar
no Rio Preto

Nós, Humildes quânticas criaturas
a se abrigar da chuva
a se amar nas pedras
Lembre-se de evitar de urinar nas pedras.
Território de onça.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Foto: Nelson Yoneda



Pintaram o céu de Goiás de cinza.

Desta arte molhou-se o chão, a rocha, o mato.

Do chão molhado infiltrou a água que fez poça e nascente.

A água da rocha banhou-se em cachoeira e do mato esverdeou o torto cerrado.

Murici deu fruto.

Palipalan se preparou para o acasalamento.
Capim estrelou no campo junto com gramíneas e ciperáceas.

Nem pássaro preto ou maritraca ou pato selvagem ou siriema entoou na invernada.

Pássaro espera a breve estiagem,

homem igual espera,

enquanto que o cerrado acumula,

brota,

agradece.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009





... e eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava, que somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, então o castigo é amar um mundo que não é ele. É porque também me ofendo à toa. É também porque precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. (...) Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes eu me acho de amor inocente. (...) Talvez eu tenha que chamar de "mundo" este meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza?

Clarice Lispector em Felicidade Clandestina

domingo, 2 de agosto de 2009

Mar emaranhado em seus cachos,
talvez azuis
Alga sua, pele de gestos ligeiramente salgados
nem flor, nem semente.
Comida de peixe e tartaruga.
Pena que eu fiquei de fora do mergulho.
Cuidado com tubarão.