quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Lua Nova

Osmar Dillon
Meu novo quarto
virado para o nascente:
meu quarto, de novo a cavaleiro da entrada da barra.
...
Depois de dez anos de pátio
volto a tomar conhecimento da aurora.
Volto a banhar meus olhos no mênstruo incruento das madrugadas.

Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.
 
Hei de aprender com ele
a partir de uma vez
- sem medo,
sem remorso,
sem saudade.
Não pensem que estou aguardando a lua cheia
- esse sol da demência
vaga e noctâmbula.
O que mais quero,
o de que preciso
...é de lua nova.

Manuel Bandeira

s� ? s � 8� evantou o antebraço esquerdo, consultou orelógio:

— 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.
— Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio.— Como?
— Já disse. Vai passando o relógio.
— Mas ...
— Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.
— Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.
O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou
de dono.
— Agora posso continuar?
— Continuar o quê?
— O passeio. Eu estava passeando, não viu?
— Vi, sim. Espera um pouco.
— Esperar o quê?
— Passa a carteira.
— Mas...
— Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade?
— Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar...
— E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?
— Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.
— Diga.
— Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.
— Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto do assalto?
— Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?
— É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na testa do cara. Sou civilizado, manja?
— Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra.
— Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.
— Não precisa, não precisa.
— Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau.
— Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.
— Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?
— Claro.
— Você, o assaltado. Certo?
— Confere.
— Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil.
— Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo.
-Tá bom, não se discute.
— Vamos, procure nos... nos escaninhos.
— Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade.
— Deixe ao menos tirar os documentos?
— Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as regras.
— Nem uma de quinhentos? Uma só.
— Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que mora perto.
— Nem eu ia aceitar dinheiro de você.
— Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha.
Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé.

Carlos Drummond de Andrade, Texto extraído do livro "Os dias lindos", Livraria José Olympio Editora — Rio de Janeiro, 1977, pág. 54.


segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Sair

Largar o cobertor, a cama, 
o medo, o terço, o quarto, 
largar toda simbologia e religião;
largar o espírito, largar a alma, 
abrir a porta principal e sair. 
Esta é a única vida
e contém inimaginável
beleza e dor. 
Já o sol,
as cores da terra 
e o ar azul – o céu do dia –
mergulharam até a próxima aurora; 
a noite está radiante
e Deus não existe nem faz falta. 
Tudo é gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.

Antonio Cicero. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.77.

domingo, 26 de setembro de 2010

Subversiva

A poesia
quando chega

                      
não respeita nada.
Nem pai nem mãe.

                              
Quando ela chega
de qualquer de seus abismos
desconhece o Estado e a Sociedade Civil
infringe o Código de Águas

                                             
relincha
como puta      
          nova

         
em frente ao Palácio da Alvorada. 
E só depois
reconsidera: beija

                    
nos olhos os que ganham mal
                    
embala no colo
                    
os que têm sede de felicidade
                    
e de justiça 
E promete incendiar o país

Ferreira Gullar

domingo, 19 de setembro de 2010

Todas as Vidas



Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera
das obscuras!
Cora Coralina

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Você meu mundo meu relógio de não marcar as horas

Você meu mundo meu relógio de não marcar horas; de esquecê-las.

Você meu andar meu ar meu comer meu descomer. 

Minha paz de espadas acesas. 

meu sono festival meu acordar entre girândolas. 

Meu banho quente morno frio quente pelando. Minha pele total. 

Minhas unhas afiadas aceradas aciduladas. 

Meu sabor veneno.

Minhas cartas marcadas que se desmarcam e voam. 

Meu suplício. Minha mansa onça pintanda pulando. 

Minha saliva minha língua passeadeira possessiva meu esfregar de barriga em barriga.
meu perder-se entre pêlos algas águas ardências. 

Meu pênis submerso. 

Túnel cova cova cova cada vez mais funda estreita mais mais. 

Meus gemidos gritos uivos guais guinchos miados ofegos ah oh ai ui nehm ahah 

minha evaporação meu suicídio gozozo glorioso.

Drummond em Amor Natural

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Amor ao mar


Você é todo veludo,
aquátil sol e berço.
Munzuais moram na umidade aderida ao seu sorriso.
Sumiu no mundo todos os talvez,
súbito clarão no corpóreo plâncton.
Preito maior são seus costões,
cobertos de anêmonas e intenções.
Sim, segui sem velhos nomes arrastada por seus presságios abissais.
No trajeto brotaram escamas de areia no espelho.
Peguei meu vestido e entreguei,
ao pescador de verso implícito,
minhas formas raras ainda brutas e impregnadas de náusea.
Você, tridente de espuma, finalmente maresia, confessou meus horizontes.
Toda uma realidade que transcende.
Nem contra o tédio precisou investir. Suas marés me transferem.
Correntezas animam o farol que me engole
Está perto e sentir saudades é pista de arrebentação.
Dentros que se derretem como visões praianas de Caymmi
Entre aquele pedacinho acumulado de oceano e as fronteiras das gotas de sal,
jardim em contracorrente onde acenam pérolas do mar.
Perante sua marinha presença,
já não tenho medo da corrosão concentrada do tempo.
É agora o mergulho para não interromper os distúrbios das sereias
nem subtrair mistérios de seus tentáculos recolhidos.
Até seus ríspidos rochedos, seus nevoeiros azuis me adornam.
Meu colar de aguerridos tráfegos.
O próprio ver desenfreado.
Se não fosse teu curso, me julgavas louca
Você pareou o impossível,
Só porque pariu Afrodite.


domingo, 12 de setembro de 2010

No descomeço era o verbo

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

Manoel de Barros

quinta-feira, 9 de setembro de 2010


O papel é curto.
Viver é comprido.
Oculto ou ambíguo,

Tudo o que digo
tem ultrasentido.
Se
rio de mim,

me levem a sério.
Ironia estéril?
Vai nesse ínterim,

meu intramistério.


Paulo Leminski

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Setembro

Queria a morte presente,
a ausência assimilada,
a partida necessária.
Queria ter-te apenas no coração,
tocar-te tão só nos sonhos,
Escutar-te nos ecos das canções de infância.
Queria a despedida verdadeira,
o adeus definitivo,
o silêncio de nossas lágrimas.
Queria os ombros amigos frente a sua verdadeira inexistência
o afastamento definitivo
o reconhecido desapego.
Sem culpa, sem medo, sem dor, sem amanhã
nunca mais reconhecer sua voz.
Queria um setembro de saudade.

O descobridor

Vem vindo o Abril, tão belo em sua
barca de ouro!
Vou contando os teus dedos:
um...dois...três...quatro...
Cinco!
Amor, eu quero navegar-te!...toda,
de norte a sul...Enquanto
Sentado à proa
Vestido de arlequim
Abril ponteia bem devagarinho
Com um dedo só -
seu bandolim azul.

Mario Quintana

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Apelo a Meus Dessemelhantes em Favor da Paz

Ah, não me tragam originais
para ler, para corrigir, para louvar
sobretudo, para louvar.
Não sou leitor do mundo nem espelho
de figuras que amam refletir-se
no outro à falta de retrato interior.
Sou o Velho Cansado
que adora o seu cansaço e não o quer
submisso ao vão comércio da palavra.
Poupem-me, por favor ou por desprezo,
se não querem poupar-me por amor.
Não leio mais, não posso, que este tempo
a mim distribuído
cai do ramo e azuleja o chão varrido,
chão tão limpo de ambição
que minha só leitura é ler o chão.
Nem sequer li os textos das pirâmides
os textos dos sarcófagos,
estou atrasadíssimo nos gregos,
não conheço os Anais de Assurbanipal,
como é que vou -
mancebos,
senhoritas,
-chegar à poesia de vanguarda
e às glórias do 2.000, que telefonam?
Passam gênios talvez entre as acácias,
sinto estátuas futuras se moldando
sem precisão de mim
que quando jovem (fui-o a.C., believe or not)
nunca pulei muro de jardim
para exigir do morador tranqüilo
a canonização do meu estilo.
Sirvam-se de exonerar este macróbio
do penoso exercício literário.
Não exijam prefácios e posfácios
ao ancião que mais fala quando cala.
Brotos de coxa flava e verso manco,
poetas de barba-colar e velutínea
calça puída, verde: tá!
Outoniços, crepusculinos, matronas, contumazes:
tá!
O senhor saiu. Hora que volta? Nunca.
Nunca de corvo, nunca de São-Nunca.
Saiu pra não voltar.
Tudo esqueceu: responder
cartas; sorrir
cumplicemente; agradecer
dedicatórias; retribuir
boas-festas; ir ao coquetel e à noite
de autógrafos-com-pastorinhas.
Ficou assim: o cacto de Manuel
é uma suavidade perto dele.
Respeitem a fera. Triste, sem presas, é fera.
Na jaula do mundo passeia a pata aplastante,
cuidado com ela!
Vocês, garotos de colégio, não perguntem ao poeta
quando ele nasceu.
Ele não nasceu.
Não vai nascer mais.
Desistiu de nascer quando viu que o esperavam garotos de colégio de lápis em punho
com professores na retaguarda comandando: Cacem o urso-polar,
tragam-no vivo para fazer uma conferência.
Repórteres de vespertinos, não tentem entrevistá-lo.
Não lhe, não me peçam opinião
que é impublicável qualquer que seja o fato do dia
e contraditória e louca antes de formulada.
Fotógrafos: não adianta
pedir pose junto ao oratório de Cocais
nem folheando o álbum de Portinari
nem tomando banho de chuveiro.
Sou contra Niepce, Daguerre, contra principalmente minha imagem.
Não quero oferecer minha cara como verônica nas revistas.
Quero a paz das estepes
a paz dos descampados
a paz do Pico de Itabira quando havia Pico de Itabira
a paz de cima das Agulhas Negras
a paz de muito abaixo da mina mais funda e esboroada
de Morro Velho
a paz
da
paz

Carlos Drummond de Andrade, em Antologia Poética

Canção suspirada

 Por que desejar libertar-me,
se é tão bom não ver o teu rosto,
se ando em meu sonho como, num rio,
alguém que é feliz e está morto?

Por que pensar em qualquer coisa,
se tudo está sobre a minha alma:
vento, flores, águas, estrelas,
e músicas de noite e albas?

Nos céus em sombra há fontes mansas
que em silêncio e esquecida bebo.
Flui o destino em minha boca
e a eternidade entre os meus dedos...

Por que fazer o menor gesto,
se nada sei, se nada sofro,
se estou perdida em mim, tão perdida
como o som da voz no teu sopro.

Cecília Meireles 

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Fera

Às vezes o tigre em mim se demonstra cruel
como é próprio da espécie.
Outras, cochila
ou se enrosca em afago emoliente
mas sempre tigre; disfarçado.

Drummond em Farewell