quarta-feira, 28 de março de 2012

terça-feira, 27 de março de 2012

A mulher-esqueleto


Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais
se lembrasse do que havia sido. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os
penhascos, atirando-a ao mar. Lá, os peixes devoraram sua carne e arrancaram seus
olhos. Enquanto jazia no fundo do mar, seu esqueleto rolou muitas vezes com as
correntes.
Um dia um pescador veio pescar. Bem, na verdade, em outros tempos muitos
costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua
colônia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de
que a enseada era mal-assombrada.
O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e se prendeu — logo em
quê! — nos ossos das costelas da Mulher-esqueleto. O pescador pensou: "Oba, agora
peguei um grande de verdade! Agora peguei um mesmo!" Na sua imaginação, ele já
via quantas pessoas esse peixe enorme iria alimentar, quanto tempo sua carne
duraria, quanto tempo ele se veria livre da obrigação de pescar. E enquanto ele lutava
com esse enorme peso na ponta do anzol, o mar se encapelou com uma espuma
agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá embaixo lutava
para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. Não
importa o que fizesse, ela estava sendo inexoravelmente arrastada para a superfície,
puxada pelos ossos das próprias costelas.
O pescador havia se voltado para recolher a rede e, por isso, não viu a cabeça
calva surgir acima das ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas
do crânio; não viu os crustáceos nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou
com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já havia chegado à
superfície e caía suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos.
— Agh! — gritou o homem, e seu coração afundou até os joelhos, seus olhos se
esconderam apavorados no fundo da cabeça e suas orelhas arderam num vermelho
forte. — Agh! — berrou ele, soltando-a da proa com o remo e começando a remar
loucamente na direção da terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua
linha, ele ficou ainda mais assustado pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o
tempo todo até a praia. Não importava de que jeito ele desviasse o caiaque, ela
continuava ali atrás. Sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e seus
braços se agitavam como se quisessem agarrá-lo para levá-lo para as profundezas.
— Aaagggggghhhh! — uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um
salto ele estava fora da embarcação e saía correndo agarrado à vara de pescar. E o
cadáver branco da Mulher-esqueleto, ainda preso à linha de pescar, vinha aos
solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela o acompanhou. Ele
atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que
havia deixado a secar, rachando-a em pedaços com as passadas dos seus
mukluks.
O tempo todo ela continuou atrás dele, na verdade até pegou um pedaço do
peixe congelado enquanto era arrastada. E logo começou a comer, porque há muito,
muito tempo não se saciava. Finalmente, o homem chegou ao seu iglu, enfiou-se
direto no túnel e, de quatro, engatinhou de qualquer jeito para dentro. Ofegante e
soluçante, ele ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um
tambor enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é, seguro, graças aos deuses,
Raven, é, graças a Raven, é, e também à todo-generosa Sedna, em segurança, afinal.
Imaginem quando ele acendeu sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela
— aquilo — jogada num monte no chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro,
um joelho preso nas costelas, um pé por cima do cotovelo. Mais tarde ele não saberia
dizer o que realmente aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado suas feições; talvez
fosse o fato de ele ser um homem solitário. Mas sua respiração ganhou um quê de
delicadeza, bem devagar ele estendeu as mãos encardidas e, falando baixinho como a
mãe fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar.
— Oh, na, na, na. — Ele primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos.
— Oh, na, na, na. — Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para
aquecê-la, já que os ossos da Mulher-esqueleto eram iguaizinhos aos de um ser
humano.
Ele procurou sua pederneira na bainha de couro e usou um pouco do próprio
cabelo para acender mais um foguinho. Ficou olhando para ela de vez em quando
enquanto passava óleo na preciosa madeira da sua vara de pescar e enrolava
novamente sua linha de seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra —
não tinha coragem — para que o caçador não a levasse lá para fora e a jogasse lá
embaixo nas pedras, quebrando totalmente seus ossos.
O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava
sonhando. Às vezes, quando os seres humanos dormem, acontece de uma lágrima
escapar do olho de quem sonha. Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas
sabemos que ou é um sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o
homem.
A Mulher-esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do fogo, e de repente ela
sentiu uma sede daquelas. Ela se aproximou do homem que dormia, rangendo e
retinindo, e pôs a boca junto à lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela
bebeu, bebeu e bebeu até saciar sua sede de tantos anos.
Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do
homem que dormia e retirou seu coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou
a batucar dos dois lados do coração:
Bom, Bomm!... Bom, Bomm!



Enquanto marcava o ritmo, ela começou a cantar em voz alta.
— Carne, carne, carne! Carne, carne, carne! — E quanto mais cantava, mais seu
corpo se revestia de carne. Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e mãos boas e
gordas. Ela cantou para ter a divisão entre as pernas e seios compridos o suficiente
para se enrolarem e dar calor, e todas as coisas de que as mulheres precisam.
Quando estava pronta, ela também cantou para despir o homem que dormia e
se enfiou na cama com ele, a pele de um tocando a do outro. Ela devolveu o grande
tambor, o coração, ao corpo dele, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro,
enredados da noite juntos, agora de outro jeito, de um jeito bom e duradouro.

As pessoas que não conseguem se lembrar de como aconteceu sua primeira
desgraça dizem que ela e o pescador foram embora e sempre foram bem alimentados
pelas criaturas que ela conheceu na sua vida debaixo d'água. As pessoas garantem
que é verdade e que é só isso o que sabem.


Clarissa Pinkola Estes, Em Mulheres que correm com os lobos

segunda-feira, 26 de março de 2012

Amar você é coisa de minutos

Catrin Arno
Amar você é coisa de minutos
A morte é menos que teu beijo
Tão bom ser teu que sou
Eu a teus pés derramado
Pouco resta do que fui
De ti depende ser bom ou ruim
Serei o que achares conveniente
Serei para ti mais que um cão
Uma sombra que te aquece
Um deus que não esquece
Um servo que não diz não
Morto teu pai serei teu irmão
Direi os versos que quiseres
Esquecerei todas as mulheres
Serei tanto e tudo e todos
Vais ter nojo de eu ser isso
E estarei a teu serviço
Enquanto durar meu corpo
Enquanto me correr nas veias
O rio vermelho que se inflama
Ao ver teu rosto feito tocha
Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha
Sim, eu estarei aqui

Paulo Leminski


Desencontrários

Ilse Bing
Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.
Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.
Mandei a frase sonhar,
e ela se foi num labirinto.

Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto.

Nunca sei ao certo
se sou um menino de dúvidas
ou um homem de fé
certezas o vento leva
só dúvidas ficam de pé.


Paulo Leminski


Disfarça, tem gente olhando.
Uns olham pro alto,
cometas, luas, galáxias.
Outros, olham de banda,
lunetas, luares, sintaxes.
...De frente ou de lado,
sempre tem gente olhando,
olhando ou sendo olhado.
Outros olham para baixo,
procurando algum vestígio
do tempo que a gente acha,
em busca do espaço perdido.
Raros olham para dentro,
já que dentro não tem nada.
Apenas um peso imenso,
a alma, esse conto de fada.

Paulo Leminski


domingo, 25 de março de 2012





Procuro esquecer-me do modo de lembrar
 que me ensinaram, e raspar a tinta
 com que me pintaram os sentidos,
 desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
 desembrulhar-me
 e ser eu.

Alberto Caeiro

terça-feira, 20 de março de 2012


Lo importante es mantener el espíritu despierto, vibrante. Y esto hay que conseguirlo ocupándose en divinas cosas inútiles. Imita a los niños: juega. Jugar es realizar algo de acuerdo con nuestra personal tendencia. Obrar de dentro afuera, con libertad, que es manifestar el orden

Torres-Garcia

Jabuticabinhas



Quando chego em casa me ajoelho
Fico ali na altura do beijo
Meninos coloridos
Beijos coloridos
Olhos coloridos
Como jabuticabinhas
Todas com a mesma cor
Mas cada uma com uma alegria
Reflexos de almas que eu amo
Me chamam de pai
E eu, ai, me jogo neles
Me fazem lembrar de tudo que há de bom
Me libertam
Me completam
Se empoleiram em mim
E caímos todos
Felizes
Morrendo de rir
E depois pro violão
É tarde: só mais uma canção...

Julião




segunda-feira, 19 de março de 2012

Identidade

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço
Mia Couto
 

domingo, 18 de março de 2012

Fracasso do parquinho


Meu coração fez o caminho inverso:
não tocou o encantamento quando menino:
brincava de nuvem.
Nada era suficientemente azul
Nem etílico e nem metálico
que fosse servido na festa.
Antropofágico de si não fez pontes,
 ao invés,
esculpiu segredos. 

Remoto, enfrenta uma janela emperrada.
Também esta fruta, por exemplo, que permanece no ramo.
Avisa aos eremitas que não adianta descer a barra do vestido.
Pelo contrário, é preciso,
com preguiça e com pressa,
dedicar-se ao império extinto

(ao menos nas primeiras horas do dia. 
a noite também é propício, 
mas desde que se esteja acordado).

sábado, 17 de março de 2012

Luar


Todo buraco está cheio de (lu)ar.
Mesmo nas notas de semi.lua sem.lua semi.nua
Semin.(l)ua

quarta-feira, 14 de março de 2012

Sempre (Uma triangulação quintanesa)


Sou o dono dos tesouros perdidos no fundo do mar.
Só o que está perdido é nosso para sempre.
Nós só amamos os amigos mortos
E só as amadas mortas amam eternamente…

Mario Quintana

Torre Azul

É preciso construir uma torre
- uma torre azul para os suicidas.
Têm qualquer coisa de anjo esses suicidas voadores,
qualquer coisa de anjo que perdeu as asas.
É preciso construir-lhes um túnel
- um túnel sem fim e sem saída
e onde um trem viajasse eternamente
como uma nave em alto-mar perdida.
É preciso construir uma torre…
É preciso construir um túnel…
É preciso morrer de puro,
puro amor!…

Mario Quintana

Os Arroios

 
Os arroios são rios guris…
Vão pulando e cantando dentre as pedras.
Fazem borbulhas d’água no caminho: bonito!
Dão vau aos burricos,
às belas morenas,
curiosos das pernas das belas morenas.
E às vezes vão tão devagar
que conhecem o cheiro e a cor das flores
que se debruçam sobre eles nos matos que atravessam
e onde parece quererem sestear.
Às vezes uma asa branca roça-os, súbita emoção
como a nossa se recebêssemos o miraculoso encontrão
de um Anjo…
Mas nem nós nem os rios sabemos nada disso.
Os rios tresandam óleo e alcatrão
e refletem, em vez de estrelas,
os letreiros das firmas que transportam utilidades.
Que pena me dão os arroios,
os inocentes arroios…

terça-feira, 13 de março de 2012

Tentativa


Michelle Teague

Manhã básica, alcalina,
neutralizando a gota ácida do sol.
O tornassol do céu, no fundo
do grande tubo de ensaio,
vai se espessando, cada vez mais azul.

Dos poços da marna alagada,
cheios, como frascos chatos sem gargalos,
sobem vapores alvacentos.
A pressão calca cinco atmosferas,
e o calor cresce,
nas alavancas de pirômetros negros,
dilatando as sombras.

Rápida,
uma revoada triangular de periquitos
estraleja e crepita,
flambada em alça enorme de platina,
como o fio de chama, fugidio e verde,
de um sal de boro...

Quanto esforço da manhã,
para riscar tão alto,
um corisco de esperança...

João Guimarães Rosa

segunda-feira, 12 de março de 2012

A vida sempre foi boa comigo



A vida sempre foi boa comigo!
Quando soube que o meu coração
estava carregado de sombras,
e que ele só se alimenta de luz,
abriu uma janela no meu peito,
para que por ela, possam entrar
o resplendor do orvalho,
o fulgor das estrelas,
e o invisível arco-íris do amor.

Thiago de Mello

quarta-feira, 7 de março de 2012

Amor - Vida



Vivi entre os homens
Que não me viram, não me ouviram
Nem me consolaram.
Eu fui o poeta que distribui seus dons
E que não recebe coisa alguma.
Fui envolvido na tempestade do amor,
Tive que amar até antes do meu nascimento.
Amor, palavra que funda e consome os seres.
Fogo, fogo do inferno: melhor que o céu.

Murilo Mendes

terça-feira, 6 de março de 2012

Off price



Que a sorte me livre do mercado
e que me deixe
continuar fazendo (sem o saber)
fora de esquema
meu poema
inesperado


e que eu possa
cada vez mais desaprender
de pensar o pensado
e assim poder
reinventar o certo pelo errado

Ferreira Gullar

quinta-feira, 1 de março de 2012



Tome-se duas dúzias de beijocas 
Acrescente-se uma dose de manteiga do desejo 
Adicione-se três gramas de polvilho do Ciúme
Deite-se quatro colheres de açúcar da Melancolia
Coloque-se dois ovos
Agite-se com o braço da Fatalidade 
E dê de duas horas em duas horas marcadas
No relógio de um ponteiro só!

Pegue-se 3 litros do visgo da amizade 
Ajunte-se 3 quilos do açúcar cristalizado da admiração
Perfume-se com 5 tragos da pinga do entusiasmo
Mexa-se até ficar melado bem pegajento
E engula-se tudo de uma vez
Como adesão do Mário de Andrade 
Ao almoço
PraTarsila
E
Oswaldo
Amém.

Entre dos Aguas