segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O sal da Lingua


Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras,
 pouco mais.
Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.
 Eugênio de Andrade

Aventura na Casa Atarracada


Movido contraditoriamente
por desejo e ironia
não disse mas soltou,
numa noite fria,
aparentemente desalmado;
- Te pego lá na esquina,
na palpitação da jugular,
com soro de verdade e meia,
bem na veia, e cimento armado
para o primeiro a andar.

Ao que ela teria contestado, não,
desconversado, na beira do andaime
ainda a descoberto: - Eu também,
preciso de alguém que só me ame.
Pura preguiça, não se movia nem um passo.
Bem se sabe que ali ela não presta.
E ficaram assim, por mais de hora,
a tomar chá, quase na borda,
olhos nos olhos, e quase testa a testa.

Ana Cristina Cesar

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011



Esta
brisa
marinha
semimágica
que entra tão
sub-repticiamente
pela janela denuncia_
o que? ou liquefaz meus
suspiros, em mistério tátil e
tácito.--------------------------
Meu Deus, de novo a brisa a me
desalienar e desalinhar, despertando
o borbulhar que o ano inteirinho pressentiu.
--------------------------------------- Suspirosa
e oleosa, uma tonta. Sigo o rádio. Será que eu
fui engolida inteira? Faz de conta que a mi-
nha digestão é fácil, que as grandes partes se
derreteram já, que os ossos cuspidos estão ar-

rumados, insensíveis e ressecando ------- ----
-------- Ouvi dizer, li em algum lugar: Ana
é idiota. Se conspirassem contra mim, tal- vez
eu fosse. ----------------------A noite des-

pencou e quebrou três estrelas.

Ana Cristina César


sábado, 19 de fevereiro de 2011

Eterno

E como ficou chato ser moderno.
Agora serei eterno.

Eterno! Eterno!
O Padre Eterno,
a vida eterna,
o fogo eterno.

(Le silence éternel de ces espaces infinis m'effraie.)

O que é eterno, Yayá Lindinha?
Ingrato! é o amor que te tenho.

Eternalidade eternite eternaltivamente
                   eternuávamos
                           eternissíssimo
A cada instante se criam novas categorias do eterno.

Eterna é a flor que se fana
se soube florir
é o menino recém-nascido
antes que lhe dêem nome
e lhe comuniquem o sentimento do efêmero
é o gesto de enlaçar e beijar
na visita do amor às almas
eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo
mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma
                                                [força o resgata
é minha mãe em mim que a estou pensando
de tanto que a perdi de não pensá-la
é o que se pensa em nós se estamos loucos
é tudo que passou, porque passou
é tudo que não passa, pois não houve
eternas as palavras, eternos os pensamentos; e
                                                [passageiras as obras.
Eterno, mas até quando? é esse marulho em nós de um
                                                [mar profundo.
Naufragamos sem praia; e na solidão dos botos
                                                [afundamos.
É tentação a vertigem; e também a pirueta dos ébrios.
Eternos! Eternos, miseravelmente.
O relógio no pulso é nosso confidente.

Mas eu não quero ser senão eterno.
Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma
                                               [essência
ou nem isso.
E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde
                                               [pousou uma sombra
e que não fique o chão nem fique a sombra
mas que a precisão urgente de ser eterno bóie como uma
                                               [esponja no caos
e entre oceanos de nada
gere um ritmo.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011


Ousa.
E o mais fundo de mim
Me diz apenas: Canta,
Porque à tua volta
É noite. O ser descansa.



Hilda Hilst
. Exercícios. São Paulo: Globo, 2002. p 29/30

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011



No aeroporto o menino perguntou:
- E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
- E se o avião tropicar num passarinho triste?
...A mãe teve tonturas e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores
virtudes da poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia
do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.
E ficou sendo.


Manoel de Barros em Exercícios de ser criança

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011


Eu quero mais.
Mais paz.
Mais saúde.
Mais poesia.
Mais verdade.
Mais noites bem dormidas.
Mais noites em claro.
Mais sorrisos, beijos e aquela rima grudada na boca.

Caio Fernando Abreu

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Poema Transitório



(...) é preciso partir
é preciso chegar
é preciso partir é preciso chegar... Ah, como esta vida é urgente!

... no entanto
eu gostava mesmo era de partir...
e - até hoje - quando acaso embarco
para alguma parte
acomodo-me no meu lugar
fecho os olhos e sonho:
viajar, viajar
mas para parte nenhuma...
viajar indefinidamente...
como uma nave espacial perdida entre as estrelas.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Para ser grande

Sê inteiro:
nada
Teu
exagera
ou
exclui.
Sê todo
em cada
coisa.
Põe
quanto
és
no mínimo
que fazes.
Assim como
em cada
lago
a lua toda
Brilha,
porque alta vive.

Fernando Pessoa
Erwin Blumenfeld

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Olhar-se ao espelho e dizer-se deslumbrada: Como sou misteriosa. Sou tão delicada e forte. E a curva dos lábios manteve a inocência. Não há homem ou mulher que por acaso não se tenha olhado ao espelho e se surpreendido consigo próprio. Por uma fração de segundo a gente se vê como a um objeto a ser olhado. A isto se chamaria talvez de narcisismo, mas eu chamaria de: alegria de ser. Alegria de encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não imaginei, eu existo.

Clarice Lispector


Nada tão comum
que não possa chamá-lo
meu

nada tão meu
que não possa dizê-lo
nosso

nada tão mole
que não possa dizê-lo
osso

nada tão duro
que não possa dizer
posso

Paulo Leminski


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011