quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A brusca poesia da mulher amada (II)

A mulher amada carrega o cetro, o seu fastígio
É máximo. A mulher amada é aquela que aponta para a noite
E de cujo seio surge a aurora. A mulher amada
É quem traça a curva do horizonte e dá linha ao movimento dos astros.
Não há solidão sem que sobrevenha a mulher amada
Em seu acúmen. A mulher amada é o padrão índigo da cúpula
E o elemento verde antagônico. A mulher amada
É o tempo passado no tempo presente no tempo futuro
No sem tempo. A mulher amada é o navio submerso
É o tempo submerso, é a montanha imersa em líquen.
É o mar, é o mar, é o mar a mulher amada
E sua ausência. Longe, no fundo plácido da noite
Outra coisa não é senão o seio da mulher amada
Que ilumina a cegueira dos homens. Alta, tranqüila e trágica
É essa que eu chamo pelo nome de mulher amada.
Nascitura. Nascitura da mulher amada
É a mulher amada. A mulher amada é a mulher amada é a mulher amada
É a mulher amada. Quem é que semeia o vento? – a mulher amada!
Quem colhe a tempestade? – a mulher amada!
Quem determina os meridianos? – a mulher amada!
Quem a misteriosa portadora de si mesma? A mulher amada.
Talvegue, estrela, petardo
Nada a não ser a mulher amada necessariamente amada
Quando! E de outro não seja, pois é ela
A coluna e o gral, a fé e o símbolo, implícita
Na criação. Por isso, seja ela! A ela o canto e a oferenda
O gozo e o privilégio, a taça erguida e o sangue do poeta
Correndo pelas ruas e iluminando as perplexidades.
Eia, a mulher amada! Seja ela o princípio e o fim de todas as coisas.
Poder geral, completo, absoluto à mulher amada!

Vinicius de Moraes

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Meu coração




Meu coração é um poço de mel,
No centro de um jardim encantado,
Alimentando beija-flores que, depois de prová-lo,
Transforman-se magicamente em cavalos brancos alados
Que voam para longe, em direção à estrela Vega.
Levam junto quem me ama, me levam junto também.
Cascata de champanha,
Púrpura rosa do Cairo,
Verso de Mario Quintana,
Figo maduo, papel crepon,
Cão uivando pra lua, varinha de incenso.
Acesa, aceso
Vasto, vivo:
Meu coração
É teu.

Caio Fernando Abreu

domingo, 23 de outubro de 2011

Sinto

Sinto
que em minhas veias arde
sangue,
chama vermelha que vai cozendo
minhas paixões no coração.

Mulheres, por favor,
derramai água:
quando tudo se queima,
só as fagulhas voam
ao vento.

Federico García Lorca, em 'Poemas Esparsos'
Tradução de Oscar Mendes

ela, por privação,
ele, pelas escolhas,
seguem atordoados pelos caminhos paralelos a beira dos abismos preenchidos.
É uma enseada sem horizontes a vida.

sábado, 22 de outubro de 2011

O amor



Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.

A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável.

A marcar sobre os teus flancos
itinerários da espuma.

Assim é o amor: mortal e navegável


Eugénio de Andrade

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Enleio

Que é que vou dizer a você?
Não estudei ainda o código
de amor.

Inventar, não posso.
Falar, não sei.
Balbuciar, não ouso.

Fico de olhos baixos
espiando, no chão, a formiga.

Você sentada na cadeira de palhinha.
Se ao menos você ficasse aí nessa posição
perfeitamente imóvel, como está,
uns quinze anos ( só isso)
então eu diria:
Eu te amo.

Por enquanto sou apenas o menino
diante da mulher que não percebe nada.

Será que você não entende, será que você é burra?

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Eu gosto muito de guarda-chuvas

Erik Satie - bajo la lluvia

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva

Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego…
...
Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece…

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente…

Fernando Pessoa

domingo, 16 de outubro de 2011


Só me interessa o poema.
Que passada essa vida de funcionário.
Fui ali escalar aquele torpedo.

gary.issacs
 Desejo embalado nesse saquinho de autoridade
que se sintas firme com suas dúvidas,
(no ar o que vagueja é o espaço)
que estejas plácido em sua solidão,
(o átomo é o falso princípio da concordância)
que ascendas feliz à morte,
(se estas vivo, façamos o chá).

sábado, 15 de outubro de 2011

Mestres evocados


Hena, que na aula de história, concedeu-me a palavra quando a voz era interna.
Soraia, que entre lições da matemática, transportou-me para as brumas de Avalon.
Emanuel, que na aula de teatro, queria fugir com a menina mais tímida que eu era.
Ioci e Rita, que nas aulas de biologia, me fizeram querer contar as histórias das conchinhas.
Jac, que me presenteia com a beleza do seu passo.
Sandra, com quem tenho a sorte de aprender o sentido da maestria generosa e aguerrida.
Maria, que me deu esse sopro.
Paulo, que firmou meu compromisso com o outro.
Malu, que com seus pulinhos de alegria no 6º ano, areja minhas utopias.
Evocá-los sempre.
Reconhecê-los em nós.
É minha homenagem a todos os professores do ontem, do hoje e do amanhã.
Mestres que nos fazem,

seja qual for o caminho.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

O mar ou o infinito?


Não devo compor tantos pensamentos aquele passante.
Ontem no terraço dos segredos sublimes,
o céu estava brumoso.
Então, pude confiar perguntas do tipo:
Onde nesse corpo você desenharia suas mãos?
Adiante,
a Baia da Guanabara,
uma outra cidade,
o desejo, o desejo,
o desejo interditado.
Desassossegos que talvez tenham entrado pela aquela janela.
A imagem da mulher nua entre suas coxas.
A encantadora de rastros.

Monto em meu burrico e atravesso o Atlântico.
Estou enfeitiçada por sua calda.

Valiosos tesouros estão dentro de nós.

domingo, 9 de outubro de 2011

Mimos de Sereia

Difícil ser funcionário


Gary Isaacs
Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira.
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.

Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas
E outros não-fazeres.

É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.

Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tampouco estas palavras -
Funcionárias, sem amor.

Carlos, há uma máquina
que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.

E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulo para todos
Os tamanhos de meu corpo.

Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança.

Não encontro a palavra
Que diga a esses móveis.
Se os pudesse encarar...
Fazer seu nojo meu...

Carlos, dessa maneira
Como colher a flor?
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.

João Cabral de Melo Neto

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A estrela de seis pontas


Ter a palavra que já sou.
Esmeraldas para dar.
Eu vejo poesia nos seus braços
e caminho entre líricas na cidade das pedras preciosas.
Se fores corajoso, essa será a sua primavera,
vou abrir a porta do seu coração.
Onde está a chave?
Vou até lá de gatinhos.


em Wall Street


quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir. E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei. Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro. “Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.




(Texto extraído do livro A Descoberta do Mundo, Clarice Lispector)

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O sol há de brilhar mais uma vez

A luz há de chegar aos corações.

Nelson Cavaquinho e Elcio Soares

domingo, 2 de outubro de 2011

Suposto

michael.dweck
Quando o coração vira o invisível do corpo
talvez seja melhor parar suas pulsações, respirar o visível esforço e cantar.
Aqueles que sugerem canções áleas transportam escadas no punho.
São pessoas alegres e tristes. Especialistas da incompreensão.

Tenho uma confissão: franjas conturbadas ao vento, ora nó ora ondas, estão seguras na caixinha de música.
É o desejo no outro, cheio de sombras e fogo.
Tenho também muito sono, mas aguento firme.
Não devo perder o bonde.
O maquinista parece ter um segredo para me contar.
Suporto a largura dos prédios, escondida atrás do seu sorriso,
apenas porque sou bicho, às vezes ainda onça.

Hay de amar: greves, o instante e as marchas.
Prefira o comentário das flores,
mas comungue com os defeitos dos homens.
Eu sou assim, uma mulher fora do lugar.
Espero ser perdoada pelos deuses.

Não tenho escolha, meu sangue é vermelho.