sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Rasgar o poema

Quero te alimentar todas as manhãs
Te instruir no rio que percorre os relevos do meu corpo
adocicar seus sonhos com o meu cheiro de abismo que é tão natural e feminino
até você dormir suas visões de assombração
e como menino despojar seus pensamentos de suicídio
Plantarei anêmonas do mar no jardim de sua boca
com seus tentáculos trarei para mais próximo
o sorriso das crianças
o respeito ao tempo das coisas e dos homens
e o saber daqueles que estão a morrer.
Seguiremos viagem acompanhados dos poetas e dos bandidos
de todo céu descampado das paisagens de nossos olhos.
Serei Vênus raptada pelo fogo
Mulher imperfeita entre seus braços
Fiel às alturas de seus sentidos.
Amanheceu
Pela porta saiu também as horas de meu sono
Sobre a cama um pouco de sangue
pulsos acelerados
e a versaria que sua presença sempre faz acordar.
Peguei o caderno na estante na intenção de te chamar
Sol de incompreensões, você me vê?
Me aprende?
ilumina e escurece minhas faces?
Hoje o que preciso é sossego para prosseguir fingindo
Mas você abre as comportas
E dali água
Ribeirinhos sobem às árvores e conversam em azul
Antes do fim do poema sugiro trancar esses versos
Fechar a janela para ficar novamente no escuro
Guardar as fantasias que estão espalhadas entre os objetos da casa
Ligar o computador para o trabalho
Não te dar o que já te pertence antes mesmo do princípio do verbo
Não posso
É com você que a pena caminha
Aquele que nada me dá
o mesmo que ensina uma forma nova de ser mulher,
poeta.
Querer assim
Extrai.
Você me faz me sentir tão so(l).
Me deixa ser(tão).
Não consigo ainda rasgar o poema
"1. Aquilo que repercute em mim, é o que aprendo com meu corpo: alguma coisa fina e aguda acorda bruscamente este corpo que, nesse intervalo de tempo, estava adormecido no conhecimento racional de uma situação geral: a palavra, a imagem, o pensamento agem como um chicote. Mas meu corpo interior começa a vibrar como se sacudido por trompetes que se respondem e se sobrepõem: a incitação provoca um rastro, o rastro se espalha e tudo fica (mais ou menos rapidamente) arrasado. No imaginário amoroso, nada distingue a provocação mais fútil de um fato realmente conseqüente; o tempo é sacudido para a frente (me sobem à cabeça predições catastróficas) e para trás (me lembro atemorizado dos 'precedentes'): a partir de um nada, todo um discurso da lembrança e da morte se eleva e toma conta de mim: é o reino da memória, arma de repercussão - do 'ressentimento'.

2. Quando as frases lhe faltavam, Flaubert se jogava no sofá: ficava em 'vinha-d'olhos'. Se a coisa repercute com muita força, ela provoca uma tal confusão no meu corpo que sou obrigado a parar tudo o que estou fazendo; me deito na cama, e deixo passar a 'tempestade interior' sem lutar; ao contrário do monge zen, que se esvazia de imagens, deixo que elas me encham, sinto seu amargor até o fim."

Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes

momento num café

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

Manuel Bandeira

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Puxa! Puxa! Como tudo está tão estranho hoje! E ontem as coisas estavam tão normais! O que será que mudou à noite? Deixe-me ver: eu era a mesma quando acordei de manhã? Tenho a impressão de ter me sentido um pouco diferente. Mas se eu não sou a mesma, a próxima questão é “Quem sou eu?” Ah! esta é a grande confusão!

Lewis Carrol - Alice In Wonderland

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Flores do Mais

devagar escreva
uma primeira letra
escreva
na imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais

AC Cesar


Sobreviver... pelas crianças... pelas crianças

sábado, 16 de janeiro de 2010

AiTi

A história dos afogados nest nau-frágil
Nos corpos um mundo gasto não atravessa a goela
nem é expelido em arrojo.
Casas foram a baixo com nossas poucas fotografias.
Uma boneca e chinelos ensanguentados junto aos que não conseguiram submergir.
Preciso caminhar agora descalço.
Vermes alojados em meus passos.
Meus poucos sonhos de infância
à sorte daqueles que vieram trocar açoite por migalhas no barato mercado de nossas vidas.
Treme sob meus olhos
o fim de um princípio eternamente interrompido.
A alvorada em minutos tão acres quanto aqueles que nos pôs ao chão.
Estão todos mortos...
soterrados...
ou aguardam a morte
que caminha satisfeita entre escombros.
Neste cenário de ruínas,
por que sobreviver?
nossas crianças...

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

EM PÉ

Continuo em pé

por pulsar

por costume

por não abrir a janela decisiva

e olhar de uma vez a insolente

morte

essa mansa

dona da espera



continuo em pé

por preguiça nas despedidas

no fechamento e demolição

da memória



não é um mérito

outros desafiam

a claridade

o caos

ou a tortura



continuar em pé

quer dizer coragem



ou não ter

onde cair

morto

mario benedetti

(De A Ras de Sueño, 1967)

domingo, 10 de janeiro de 2010

Unissoou. Amor renhido, amor crescido. Cousa grande! Vocês dois são o que-não-sei: o tudo, a persistência da lua, apesar das cidades. Umbigo - centro, centro, centro. Umbigo - medida ideal. Havei forte amor! O amor não precisa de memória, não arredonda, não floreia: faz forte estilo. E fim.


João Guimarães Rosa in Ave Palavra

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Papel molhado

Com rios
com sangue
com chuva
ou sereno
com sêmen
com vinho
com neve
com pranto
os poemas
costumam ser
papel molhado.

Mario Benedetti
Tradução de Maria Teresa Almeida Pina

O copo

Estava o jacaré na beira do brejo
tomando um copo de sol.
Foi o menino
E tascou uma pedra
No olho do jacaré.
O bicho soltou três urros
E quebrou o silêncio do lugar.
Os cacos do silêncio ficaram espalhados
na praia.
O copo de sol não rachou nem.

Manoel de Barros

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Ontem

Ontem passou o passado lentamente
com sua vacilação definitiva
sabendo-te infeliz à deriva
com tuas dúvidas estampadas na testa.
Ontem passou o passado pela ponte
e levou tua liberdade prisioneira
trocando seu silêncio em carne viva
por teus leves alarmes de inocente.
Ontem passou o passado com sua história
e sua desfiada incerteza
com sua pegada de espanto e de reprovação.
Foi fazendo da dor apenas um costume
semeando de fracassos tua memória
e deixando-te só com, da noite, a solidão.

Mario Benedetti

A PONTE


Maarten Vanden Abeele
Para cruzá-la ou não cruzá-la
eis a ponte
na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país
trago comigo oferendas desusadas
entre elas um guarda-chuva de umbigo de madeira
um livro com os pânicos em branco
e um violão que não sei abraçar
venho com as faces da insônia
os lenços do mar e das pazes
os tímidos cartazes da dor
as liturgias do beijo e da sombra
nunca trouxe tanta coisa
nunca vim com tão pouco
eis a ponte
para cruzá-la ou não cruzá-la
e eu vou cruzar
sem prevenções
na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país


Mario Benedetti
(De Preguntas al azar – 1984-1985)



domingo, 3 de janeiro de 2010

A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito.

Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas,
que puxa válvulas, que olha o relógio,
que compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.

Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

Manoel de Barros