quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Porque cantamos

Clayton Bastani
Se cada hora vem com sua morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel

você perguntará por que cantamos

se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha

você perguntará por que cantamos

se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro

você perguntará por que cantamos

cantamos porque o rio esta soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino

cantamos pela infância e porque tudo
e porque algum futuro e porque o povo
cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos

cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota

cantamos porque o sol nos reconhece
e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem a sua resposta

cantamos porque chove sobre o sulco
e somos militantes desta vida
e porque não podemos nem queremos
deixar que a canção se torne cinzas.


Mario Benedetti

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Memorándum

Um chegar e incorporar-se o dia
Dois respirar para subir a ladeira
Três não jogar-se em uma só aposta
Quatro escapar da melancolia
Cinco aprender a nova geografia
Seis não ficar-se nunca sem a sesta
Sete o futuro não será uma festa e
Oito não assustar-se ainda
Nove vai a saber quem é o forte
Dez não deixar que a paciência ceda
Onze cuidar-se da boa sorte
Doze guardar a última moeda
Treze não tratar-se com a morte
Catorze desfrutar enquanto se pode.

Mario Benedetti
(Tradução de Maria Teresa Almeida Pina)

domingo, 20 de dezembro de 2009

Uma furtiva lágrima

O mar insensivelmente azul engolindo-o
O sol ardentemente vermelho marcando-o
A terra secamente laranja cortando-o
O ar friamente cinza invadindo-o
O mundo assustadoramente belo
O mundo maravilhosamente estranho
Um muro e a casa do vizinho
O homem bem velhinho que cultivava goiabas
Ali no alto, senhor de tão magnífica paisagem
Sentei-me e chorei


A mulher languidamente sedutora
O irmão estendendo a mão
O pai olhando em silêncio
A mãe falando incessantemente
As pessoas me dizendo e eu nada entendendo
Um muro e a casa do vizinho
O homem bem velhinho que falava com as plantas e insetos
Ali no alto, amando em silêncio
Sentei-me e chorei


A cidade tão incrivelmente iluminada
A movimentada avenida
O estádio lotado

O prédio prateado sem fim de tão alto
As construções mirabolantes na cidade ruidosa
A miséria e a fome ao redor
Um muro e a casa do vizinho
O homem bem velhinho que reparava sua cerca e alimentava o vira-lata
[da rua]
Sentado no muro eu consertava o mundo e chorava


O corpo ardendo em febre
O ouvido doendo de tanto escutar
O nariz conflitadamente entupido
Os músculos irritadamente doloridos
Na pele as marcas da sobrevivência de um ser vivo
Um muro e a casa do vizinho
O homem bem velhinho que cuidava de sua doente esposa
No alto do muro eu inventava medicinas e chorava


Num belo dia de outono

Os passarinhos cantavam timidamente
E o sol acariciava com delicadeza a tez
Nesse dia comumente singelo
Decidi não apenas sentar-me no muro
Queria ficar mais alto, conhecer mais, fazer mais

Foi quando escorreguei
Caí, o joelho sangrou, eu acordei
Estava do outro lado do muro
E o vizinho homem bem velhinho
Ajudou-me a cuidar da ferida
Ele me disse com amor: a gente levanta para cair de novo.
Deu-me um beijo e uma goiaba
Contou-me que sua mulher chamava-se Maria e há anos não mais falava
Contou-me que em idos tempos adorava sentar-se naquele muro e
[sonhar]
Depois me disse com olhar profundo: já sabes o segredo
“Nada é melhor do que sonhar”
Choramos juntos e nos abraçamos.


No dia seguinte
Sentei-me no muro, olhei tudo o que já havia visto antes
Dominei a beleza do mundo
Inventei medicinas
Amei as mais belas mulheres
Liderei os homens na luta por um mundo melhor
Havia uma cicatriz no meu joelho
E, apesar dos olhos tristes
Não chorei, afinal
Era apenas um garoto sentado no alto do muro, sonhando

O vizinho saiu a varanda
Olhou-me com amor
Fiquei de pé e gritei corajoso: o senhor me ajudou a não ter mais medo!
Agora, já posso sonhar sem chorar!

O velhinho entrou rapidamente, pois queria esconder uma lágrima...

(Extraída de PEYON, E. Pequenas Conchinhas. Rio de Janeiro: Papel Virtual Ed., 2004)


sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A UMA PASSANTE


A rua em derredor era um ruído incomum.
Longa, magra, de luto e na dor majestosa,
Uma mulher passou e com a mão faustosa
Erguendo, balançando o festão e o debrum;

Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata.
Eu bebia perdido em minha crispação
No seu olhar, céu que germina o furacão,
A doçura que embala e o frenesi que mata.

Um relâmpago e após a noite! - Aérea beldade,
E cujo olhar me fez renascer de repente,
Só te verei um dia e já na eternidade?

Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes meu destino, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado - e o sabias demais!


Baudelaire

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Canção Amiga

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.


Drummond
Em Novos Poemas

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Richard Avedon
Difícil isto do ser poético:
Tem dias que nossa veia se esvai,
Vazando um sem número de palavras
Que não se encaixam nem se falam.
(antes fossem mosaicos)
Para formar, num repente,
Um imenso tecido de branco papel.
Então...
As velas da prosa se inflam,
Sopradas pelos ventos do drama,
Singrando os mares do sentido...
Rumo à terra das histórias bem contadas,
Onde todos os finais se encontram.


Rodrigo Soprana

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Trenzinho Caipira

Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade e noite a girar
Lá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra
Vai pela serra
Vai pelo mar
Cantando pela serra o luar
Correndo entre as estrelas a voar
no ar, no ar...

Heitor Villa Lobos

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009


De amor e de Morte


Na janela de casa aprendi pequena a Beber do meu abismo
Deve ser leve perdoar os humores frígidos
Faço do tédio o balde que recolhe as gotas que caem do telhado.
Sempre Chove enquanto estou sonhando, milímetros ultrapassam
Em torno do tempo ursos polares com drinks derretidos se reúnem
O rei permanece fumando seus cigarros.
Entre olhos tumultuados a dor da vida em cor violeta.
Viver é tão cão e neve.
inevitável Amor?
Celebremos os Hexacampeões.
Ao invés de compras,
caso na porta de casa com bailarinos e poetas,
aqueles que fazem rir e que deixam espaço na cama.
Mais tarde, falar todos os dias com mamãe.
temperar suas dores com as palavras doces que guardo na cesta de frutas.
Essa pele permeável ainda me sufoca,
vou me esconder atrás da porta.
Encenar um homicídio,
serão poupadas as crianças e os girassóis.
Que o resto da bicharada vá compor sambas de despedida.

Serão felizes os poetas?

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

MURILOGRAMA A RIMBAUD

Inventa.
Excede do século.
Porta a partitura do caos.
Blouson noir / beat / arrabbiato:
Duro. Ar vermelho. Górgone.
Orientaliza o Ocidente.
Barcobêbedo. Anarqlúcido.
O céu-elétrico-no Índex.
Fixa a vertigem, silêncios.
Dioscuro, exclui o Oscuro.
Abole Musset, astro ociduo.
Refratário. Ambíguo. Fálico.
Osíris de T e açoite.
Canta: retira-se a flauta.
“Merveilleux”: lê “merdeilleux”.
Desdá. Desintegra.
Adenta.
Consonantiza as vogais.
Perpetuum móbile.
Médium.
Ignirouba.
Se antecede.
Morre a jato: se ultrapassa.
Desdiz a noite compacta.
Autovidente & do cosmo.
Além do signo e do símbolo.
A idéia do Dilúvio senta-se.
Murilo Mendes

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Deste mundo miudinho, criança, cura, onde a vida não se alcança e se esquece
mas que comunga e comunga e comunga.
Flor de terra, Pedra de semente, água de passarinhar.
Luz, busca dos meus olhos nublados de tanto tudo, de quase deus
Me deixa esquecer que há algo em mim
nem dor nem sorriso
Voltar a andar de pés sobre as rochas e seus atalhos
Lamber as gotas nas folhas
Ai, prometo que não choro mais
Minha palavras serão sussurros
mesmo neste peito transpassado de estranhezas, cansaços e monotonias.

sábado, 21 de novembro de 2009


Sete Janelas

Primeira: Janela da pele.
Órgão generoso do irmão corpo.
Pele de arder
Dilata quando pousas sua pele de cura na tez gelada de minhas fronteiras
Minhas pintinhas escorregam entre seus relevos ficando azuis
Bolas de gude idênticas àquelas mais almejadas pelas crianças

Segunda: Janela dos olhos,
Revela as lágrimas copiosas dos três dias
A mata dos seus olhos em meus próprios olhos
desvirando paisagens de prédios
na tela de suas íris

Terceira: Janela das mãos.
deixar quedar o afago de 100 milhões de anos que seus dedos traduzem
Dar-se em mãos no gesto de entrega

Quarta: Janela da boca,
Mais do que quente e molhada
Sagrada por ser mãe das palavras curtas e dos beijos longos.

Quinta:Janela do sexo
Carne em intenção de carne
Mineral de suas flores e chás,
Vegetal nos bichos que circulam apenas em seus jardins,
Animal dos seus cristais de esmeralda e quartzo.

Sexta: Janela do coração - Tão sereno

Sétima: Janela de cachoeira
Deixar-me plantar num grito toda esta água.
Infinitas canções de arco-íris.

Neste corpo tão grão,
Meu amor é pele, é olho, é mão, é boca, é sexo, é cachoeira
Tão aprendiz neste universo tão encantado que me rodeia e me é.
Onde está a exata essência de sua ausência?
Será na infinita inexistência do seu passo pontual rumo ao trabalho?
No silêncio dos seus abraços de carinho e proteção?
no riso... no dito...
na casa...
no vinho... no livro...
na canção...

Sim...
Na Galinha choca. Na galinha Choca. Na galinha Choca

É duríssimo e triste o nosso adeus
Este ponto parágrafo que fere nossos corações
sem esperanças de te ter novamente
sem as despedidas devidas que se merece

Adeus interditado
Sentimos esta dor.
Perdemos você, mas a noite não caiu
È este eterno céu sem luar e estrelas.
Doses diárias do gosto da morte em outro tom

Embalamos seu corpo criança a esperar apagar e calar
Embalaremos
Sorriremos

e

serenaremos
para você dormir

quarta-feira, 18 de novembro de 2009


Por outro lado, estou hoje um pouco cansada e é sobre o prazer do cansaço dolorido que vou falar. Todo prazer intenso toca no limiar da dor. Isso é bom. O sono, quando vem, é como um leve desmaio, um desmaio de amor.
Morrer deve ser assim: por algum motivo estar-se tão cansado que só o sono da morte compensa. Morrer às vezes parece um egoísmo. Mas quem morre às vezes precisa muito.
Será que morrer é o último prazer terreno?

Clarice Lispector
Em: Aprendendo a viver

terça-feira, 17 de novembro de 2009


Não é a toa que entendo os que buscam caminho. Como busquei arduamente o meu! E como hoje busco com sofreguidão e aspereza o meu melhor modo de ser, o meu atalho, já que não ouso mais falar em caminho. Eu que tinha querido tanto. O Caminho, com letra maiúscula, hoje me agarro ferozmente á procura de um modo de andar, de um passo certo.
Mas o atalho com sombras refrescantes e reflexo de luz entre as árvores, o atalho onde eu seja finalmente eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada.

Clarice Lispector

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Já tentei me pôr a par do mundo, e ficou apenas engraçado: uma de minhas pernas sempre curta demais. O paradoxo é que minha condição de manca é também alegre porque faz parte dessa condição. Mas se me torno séria e quero andar certo com o mundo, então me estraçalho e me espanto. A condição não se cura, mas o medo da condição é curável.

Clarice Lispector
Em a Descoberta do Mundo

domingo, 15 de novembro de 2009

Vamos ter um filho?
Vamos escolher o nome dele?
Deixa eu te alegrar quando você estiver triste?
Te ninar quando você estiver cansada?
Vamos foder o dia inteiro?
Deixa eu te fazer uma massagem com creme?
Vamos aprender a tocar piano juntos?
Vamos foder o dia inteiro?
Deixa eu ajoelhar, Glorinha, e beijar tua mão?
Vamos ser tão felizes que fiquemos calmos?
Tão calmos que fiquemos fortes?
Tão fortes que possamos ajudar todos os amigos que precisarem?
Vamos foder o dia inteiro?
Vamos aceitar tudo o que o outro é?
Defender tudo o que o outro é?
Amar tudo o que o outro é?
Vamos foder o dia inteiro?

Domingos de Oliveira

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Fazedor de homens

Todo homem é uma ilha...
É bom ser uma ilha distante
tanto quanto é bom ser um homem.
Todo homem possui uma ponte
pois é preciso sair da ilha, seguro.
A ponte de um homem é um braço estendido.
Todo homem é um mundo.
O mundo roda no sistema egocêntrico
de suas realidades,
pequenos alumbramentos,
medos e coragens.
E quando o homem encara o mundo
e se depara
- homem-mundo,
mundo-homem,
volta à ilha:Todo homem ama sua ilha.

II
O homem faz o homem.
E porque fez o homem,
sem nem o homem querer
aufere direitos do homem.
Diz a ele: Cresça!
E ele fica mais alto.
Diz ao homem: Trabalhe!
E ele usa o corpo.
Diz ao homem: Viva!
E ele respira e existe.
Diz ao homem: Ame!
E ele não sabe como.
Mas diz ao homem: Procrie!
E ele faz homens.
Um dia ele morre.
Se a vida foi longa para viver
- é curta para morrer -
porque o homem não fez,
não escolheu,
não pensou nada.

III
O que faz um homem diferente de outro homem
é o que ele pensa.
O que o transforma, também,
de um simples fazedor de homens,
num criador de homens.
Todo homem é uma vontade.
E se deixa de ser vontade
teme a perda de sua posse.
Todo homem é uma consciência.
Nela inclui o seu saber
e a parte maior do não saber,
e se aceita o fato, é com ela que ele se entende.
Todo homem é seu corpo.
E sabe dele em contraste com outro corpo,
tal é a sua medida.
Como também,
a medida de um homem é a sua carência:
porque é assim que ele se assume,
porque é assim que ele se liberta.
Quanto mais ele precisa
mais ele é maior.
E dá.
Pede.
Reivindica.
Exige, quanto pode.
Luta e sofre.
Todo homem quer deixar sua ilha.
Temeroso de ter que voltar um dia, entretanto,
não destrói as pontes.
Enquanto isso, a ilha fica ali, só ilha.
A ponte fica ali, só ponte.
E o homem fica ali, só homem.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 8 de novembro de 2009

Da mesma forma que o acaso gera variabilidade
Quem sabe ao acaso a gente talvez se esbarre
e eu aprenda uma combinação diversa de querer.
Ai quiçá dance entre seus tornozelos novamente.
O jeito do seu querer, me dói.
Não posso.
O jeito do meu querer, não queres .
Então, deixemos o acaso querer por nós.
Me aperta

em três segundos

se te adivinho?

Longe é a distancia suposta do dia seguinte

Eu que já fui pepino do mar,

na terra fiz quatros cavidades

moradas

para o mundo inteiro.


Tempo de ondas gigantes.

Aliás,

drogas lentas.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Lua adversa

Tenho fases,
como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha
Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

Cecília Meireles

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Ai as almas dos poetas
Não as entende ninguém;
São almas de violetas
Que são poetas também.
Andam perdidas na vida,
Como as estrelas no ar;
Sentem o vento gemer
Ouvem as rosas chorar!
Só quem embala no peito
Dores amargas e secretas
É que em noites de luar
Pode entender os poetas
E eu que arrasto amarguras
Que nunca arrastou ninguém
Tenho alma pra sentir
A dos poetas também!

Florbela Espanca

terça-feira, 27 de outubro de 2009


O Rio

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus,
refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.

Manuel Bandeira

domingo, 25 de outubro de 2009


Necrológio dos desiludidos do amor


Os desiludidos do amor estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.
Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.
Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas,
tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia.
Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e segunda classe).
Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Não olhe para frente
olha para mim
as árvores
e
os postes têm sua existência.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009



Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.


Adélia Prado

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá
mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem
nos encantos de um sabiá.
Quem acumula muita informação
perde o condão de adivinhar: divinare
Os sabiás divinam.

Manoel de Barros

domingo, 18 de outubro de 2009

O que eu sinto eu não ajo.
O que ajo não penso.
O que penso não sinto.
Do que sei sou ignorante.
Do que sinto não ignoro.
Não me entendo e ajo como se me entendesse.

Clarice Lispector
Lucien Clergue
Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Não pode haver ausência de boca nas palavras:
nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada;
mas se não desejo contar nada, faço poesia.
Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário.
A inércia é o meu ato principal.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
O artista é um erro da natureza.
Beethoven foi um erro perfeito.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Por pudor sou impuro.
Não preciso do fim para chegar.
De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de coisa esquecida na terra
— Como um lápis numa península.
Do lugar onde estou já fui embora.

Manoel de Barros


Casca

Franz, abre a porta.
Me deixe enlouquecer.
Seu pai está deitado no sofá da sala.
Ele pode está morto. Não sei.
Eu que desejo a morte do meu,
talvez.
Preciso arrumar o quarto para escrever.
Começo pelas gavetas, papéis ou roupas? Indefinido?
Começou o horário de verão.
Faz um ano que rasguei o projeto de férias em alguma cidade aguada de cachoeira.
Minha garganta está seca.
Você bem disse que eu não levantasse da cama,
mas estava com medo,
tive sonhos acelerados.
Acordei com a mandíbula pressionada.
Fui vagar na rua, encher o pulmão de fumaça.
Me diga, quando eu vou morrer?
Franz, me alegra a vida,
especialmente quando vem acompanhada de molho de tomate e macarrão.
Os legumes e frutas dispostos no interior do ônibus também são lindos.
Reparou como meus olhos são castanhos? São como mel? Não?Tudo bem.
Tenho mel na prateleira que adoce seus sulcos.
Estou com muito sono hoje.
Não consigo te escutar perfeitamente do outro lado da porta.
Abra a janela ao menos.
Esta não é a hora dos insetos voadores.
Espere, vou apagar meus olhos alguns instantes.
É que a louça está acumulando na pia da cozinha e esta é a medida de minha loucura.
Ou diversão, depende se é carnaval.
Também me agrada continuar a conversa,
mas seu pai me fez chorar.
Meus olhos estão ardendo.
Não consegui ler os versos sem falsear a voz.
Me comprazi com a finura de seus nervos e o espetáculo de seu gênio.
Um perfeito canalha, como aquele que me deu meu sangue.
Que herança.
Por isso, te perdôo por deixar-me sozinha com ele na sala.
Caso esteja realmente morto,
saiba que não o servi nem ao menos chá.
A não ser que o sal de minhas lágrimas tenha gerado alguma espécie de alergia fatal.
Se o matei, não foi proposital.
Ele já estava morto, como o meu está desde um tempo muito amargo de pronunciar.
A cor dos meus lençóis são verde e violeta.
As violetas estão tão floridas na soleira da janela.
Abre a janela.
Prometo que não vou me jogar, tem macarrão para a ceia.
Franz, viver precipita.
Procura o sentido no dicionário.
Queda, caída, descida rápida.
Extrema velocidade.
Grande pressão.
Afobação.
Ou quem sabe Deus tenha intenções químicas e resolveu separar
nossa matéria em forma de sedimento
do líquido onde se encontra dissolvido nossa existência.
Muito mais inteligente do que eu, você deve saber
ou fingir que sabe.
Adiantou em uma hora o relógio?
Morto faz isso?
Uma hora que passou e não vivi.
A única hora do ano que não envelheci uma hora.
Eu sei. O poema não acabou.
Não fique nervoso comigo,
tenho obrigações a cumprir ainda neste dia.
Preciso circular os anúncios no jornal.
Revisar os textos.
E urgentemente diminuir a pilha de louça na pia da cozinha.
Evitar baratas, sou péssima em matá-las.

sábado, 17 de outubro de 2009

A missa do Morro dos Prazeres



Sursum corda.
Ao alto os corações.
Subir,
com toda alegoria em cima,
subir,
subir a parada
que a lua cheia é a hóstia consagrada na vala negra aberta,
subir,
que o foguetório anuncia a chegada do carregamento,
subir,
querubim errante transformista,
subir,
o incensório da esquadrilha da fumaça-mãe,
subir,
como se inalasse a neve do Monte Fuji,
subir,
o visgo da jaca já gruda na pele,
subir,
salvam pipocos da chefia do movimento,
subir,
soou a hora da elevação,
subir que o morro é batizado
com a graça de Morro dos Prazeres
- topograficamente situado no Rio de Janeiro.
Subir o morro
que a missa católica do asfalto
- sem os paramentos e as jaculatórias do latim da infância -
pouco difere de reunião de condomínio,
sacrifício sem entusiasmós.


Waly Salomão

Brinde no banquete das musas

Poesia, marulho e náusea,
poesia, canção suicida,
poesia, que recomeças
de outro mundo, noutra vida.

Deixaste-nos mais famintos,
poesia, comida estranha,
se nenhum pão te equivale:
a mosca deglute a aranha.

Poesia, sobre os princípios
e os vagos dons do universo:
em teu regaço incestuoso
o belo câncer do verso.

Azul, em chama, o telúrio
reintegra a essência do poeta
e o que é perdido se salba...
Poesia, morte secreta.

Carlos Drummond de Andrade
Hoje descobri algo muito importante: o momento. A vivência do momento é o que me interessa como expressão viva, é a anti-arte na realidade, pois o eterno não conta. Não me refiro ao ato, que vai numa sucessão de momentos mas ao momento mesmo: um dia de sol, azul no inverno do Rio, deu-me mais vivência inesperada, uma subia emoção: não me interessa a reprodução destes momentos nem em palavras nem em “obras”, mas o momento ou a verificação futura dele por outrem. Ah! Ambição suprema. Fazer com que verificássemos o momento quando é grande, uma vivência importante apesar de fugaz, e não fazê-la meio para uma “obra” ou outra coisa qualquer.

9 de agosto de 1966

Hélio Oiticica

Grande Sertão: Veredas

Revirei meu fraseado. Quis falar em coração fiel e sentidas coisas. Poetagem. Mas era o que eu sincero queria - como em fala de livros, o senhor sabe: de bel-ver, bel-fazer e bel-amar. O que uma mocinha assim governa, sem precisão de armas e golpes, guardada macia e fina em sua casa- grande, sorrindo santinha no alto da alpendra... E ela queria saber tudo de mim, mais ainda me perguntava. - "Donde é mesmo que o senhor é, donde?" Se sorria. E eu não medi meus alforjes".

João Guimarães Rosa

quarta-feira, 14 de outubro de 2009


Ele sabe e por isso esconde sua garganta profunda dos meus olhos
Tranca sua alma mistério de qualquer tentativa bruta de aproximação.
Tanto mais grito, mais resvala, nubla.
Faço gelatina de frutas e espero o tempo de flor.
Se eu não partir ou morrer quem sabe a gente ainda se confunde.
Está aqui meu endereço. Se encontrar... agradeço.
Mesmo assim tomo as providências necessárias para desfazer
as trolhas,
pedras
e derrapadas.
Afinal, antes do fim do mundo não pretendo voltar,
mesmo que seque suas palavras sem o pão da minha boca em você.
Chegou a hora do descanso,
deixar esquecer meus pés na solitude imensa do cerrado.
Desidratar toda espécie de desejo.
Desidratar você do meu coração.
Até meu coração virar
e
apagar.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Tracey Emin


Gigante descansa depois da refeição.
Sequestrou bem rápido a retina da nova mulher que de início esperneou,
mas logo soube divisar a maré das horas inevitáveis e profundas.
No exílio foi possível trocar de calendário, de calcinha e abdômen.
Soberbo, ela não chorou.
Só trouxe suas coisas aos bocados e se instalou no meu armário e ossos.
Trocou o cheiro dos meus sabonetes.

Pela manhã não espera que eu a lamba. Já conta sonhos estranhos.
Desenha minhas narinas do gosto acre de seu hálito vespertino.
Sugere aos meus ouvidos devaneios caramelizados de suas horas de escuridão.
E suas mãos sempre frias nas minhas,
nossas mãos incrivelmente nuas e inocentes agora cativas dessa nova vida.
Inteiras e reféns
E cálice
Onde sou gigante.


segunda-feira, 12 de outubro de 2009



Nesta vida,
pode-se aprender
três coisas
de uma criança:
estar sempre
alegre,
nunca
ficar inativo
e chorar
com força
por tudo
o que se quer.


Paulo Leminski

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Estranheza do Mundo

Olho a árvore e indago:
está aí para quê?
O mundo é sem sentido
quanto mais vasto é.
Esta pedra esta folha
este mar sem tamanho
fecham-se em si,
me repelem.
Pervago em um mundo estranho.
Mas em meio à estranheza do mundo,
descubro uma nova beleza
com que me deslumbro:
é teu doce sorriso
é tua pele macia
são teus olhos brilhando
é essa tua alegria.
Olho a árvore e já
não pergunto "para quê"?
A estranheza do mundo
se dissipa em você.

Ferreira Gullar

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Segundo salto



No segundo salto continuo a gritar.
A voz sai grave
quando antes doía no estômago.
Fonoaudiologias da vida permitem que alguns sobrevivam
e tenham pão recheado.

Ora sim ora também sim
tenho absoluta incerteza do traçado definido para o plano de voo
mas gosto das paisagens que minha escrivaninha aponta.
Tem cheiro de gente nova
jeito de coisa velha
promessa de formas diversas de fiar no mundo.

Vontade de dormir, não escapo.
Há lá encantamentos nas fendas da terra
que no ponto de ônibus é difícil visar os perfis.
Cinco horas calado e parado, de quase todos se exige
Em poucos desce como vitamina.
Quebrem tudo, será meu grito contido
Olhem e duvidem
Escrevam na porta de minha última casa

Mas estes são os meus três segundos de sal.
Se tem sol,
prefiro semear com a aldeia desejos de fim de mundo,
que as bandidas aprendam também.
Parece que da minha janela se vê mais vasto
Adoro este cheiro de respiração.
Estranhos, quais são seus passos?
Darei mel de minhas vísceras
a quem me convencer a dormir todos os dias em seus pensamentos
sou madeira fiel às verticais miragens,
minha sina é o chão.
Por mais que a terra escureça,

não esquecer da esperança como concepção de futuro.