terça-feira, 31 de agosto de 2010

O MITO de e por Carlos Drummond de Andrade

O Mito



Sequer conheço fulana,
Vejo fulana tão curto
Fulana jamais me vê,
Mas como amo fulana.
Amarei mesmo fulana?
Ou é ilusão de sexo?
Talvez a linha do busto,
Da perna, talvez o ombro.
Amo fulana tão forte,
Amo fulana tão dor,
Que todo me despedaço
E choro,menino, choro
Mas fulana vai se rindo...
Vejam fulana dançando
No esporte ele está sozinha
No bar, quão acompanhada.
E fulana diz mistérios,
Diz marxismo, rimmel, gás.
Fulana me bombardeia,
No entanto sequer me vê.
E sequer nos compreendemos,
É dama de alta fidúcia,
Tem latifúndios, iates,
Sustenta cinco mil pobres,
Menos eu...que de orgulhoso
Me basto pensando nela
Pensando com unha, plasma,
Fúria, gilete, desânimo.
Amor tão disparatado,
Desbaratado é que é...
Nunca a sentei no meu colo
Nem vi pela fechadura.
Mas sei quanto me custa
Manter esse gelo digno,
Essa indiferença gaia, e não gritar:vem, fulana!
Como deixar de invadir
Sua casa de mil fechos
E sua veste arrancando
Mostrá-la depois ao povo
Tal como deve ser:
Branca, intata, neutra, rara,
Feita de pedera translúcida,
De ausência e ruivos ornatos.
Mas como será fulana,
Digamos, no seu banheiro?
Só de pensar em seu corpo,
O meu se punge...pois sim.
Porque preciso do corpo
Para mendigar fulana,
Rogar-lhe que pise em mim,
Que me maltrate...assim não.
Mas fulana será gente?
Estará somente em ópera?
Será figura de livros?
Será bicho? saberei?
Não saberei? só pegando,
Pedindo: dona, desculpe,
O seu vestido, esconde algo?
Tem coxas reais? cintura?
Fulana às vêzes existe
Demais: até me apavora.
Vou sozinho pela rua,
Eis que fulana me roça.
Mas não quero nada disso.
Para que chatear fulana?
Pancada na sua nuca
Na minha que vai doer.
E daí não sou criança
Fulana estudo meu rosto
Coitado: de raça branca
Tadinho: tinha gravata
Já morto, me quererá?
Esconjuro, se é necrófila...
Fulana é vida, ama as flores,
As artérias e as debêntures.
Sei que jamais me perdoara
Matar-me para servi-la.
Fulana quer homens fortes
Couraçados, invasores.
Fulana é tão dinâmica
Tem um motor na barriga.
Suas unhas são elétricas,
Seus beijos refrigerados,
Desinfetados, gravados
Em máquina multilite.
Fulana, como é sadia!
Os enfermos somos nós.
Sou eu, o poeta precário
Que fêz de fulana um mito
Nutrindo-me de petrarca,
Ronsard, camões e capim;
Que a sei embebida em leite,
Carne, tomate, ginástica
E lhe colo metafísicas,
Enigmas, causas primeiras.
Mas, se tentasse construir
Outra fulana que não
Essa de burguês sorisso
E de tão burro esplendor?
Mudo-lhe o nome: recorto-lhe
Um traje de transparência;
Já perde a carência humana
E bato-a; de tirar sangue.
E lhe dou todas as faces
De meu sonho que especula;
E abolimos a cidade
Já sem peso e nitidez.
E vadeamos a ciência,
Mar de hipóteses.a lua
Fica sendo nosso esquema
De um território mais justo.
E colocamos os dados
De um mundo sem classe e imposto;
E nesse mundo instalamos
Os nossos irmãos vingados:
E nessa fase gloriosa,
De contradições extintas,
Eu e fulana, abrasados,
Queremos...que mais queremos?
E digo a fulana: amiga,
Afinal nos compreendemos.
Já não sofro, já não brilhas,
Mas somos a mesma coisa
( uma coisa tão diversa da que pensava que fossemos.)

Carlos Drummond de Andrade, em Antologia Poética


segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Cidadezinha qualquer


Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.  
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.

Drummond

Coração numeroso

Foi no Rio.
Eu passava na Avenida quase meia-noite.
Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.
Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.
Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.
O mar batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.

Carlos Drummond de Andrade, em Antologia Poética

domingo, 29 de agosto de 2010

Perguntas

Numa incerta hora fria
perguntei ao fantasma
que força nos prendia,
ele a mim, que presumo
estar livre de tudo,
eu a ele, gasoso,
todavia palpável
na sombra que projeta
sobre meu ser inteiro:
um ao outro, cativos
desse mesmo princípio
ou desse mesmo enigma
que distrai ou concentra
e renova e matiza,
prolongando-a no espaço
uma angústia do tempo.

Perguntei-lhe em seguida
o segredo de nosso
convívio sem contato,
de estarmos ali quedos,
eu em face do espelho,
e o espelho devolvendo
uma diversa imagem,
mas sempre evocativa
do primeiro retrato
que compõe de si mesma
a alma predestinada
a um tipo de aventura
terrestre, cotidiana.

Perguntei-lhe depois
por que tanto insistia
nos mares mais exíguos
em distribuir navios
desse calado irreal,
sem rota ou pensamento
de atingir qualquer porto,
propícios a naufrágio
mais que à navegação;
nos frios alcantis
de meu serro natal,
desde muito derruído,
em acordar memórias
de vaqueiros e vozes,
magras reses, caminhos
onde a bosta de vaca
é o único ornamento,
e o coqueiro-de-espinho
desolado se alteia.

Perguntei-lhe por fim
a razão sem razão
de me inclinar aflito
sobre restos de restos,
de onde nenhum alento
vem refrescar a febre
desse repensamento:
sobre esse chão de ruínas
imóveis, militares
na sua rigidez
que o orvalho matutino
já não banha ou conforta.

No vôo que desfere,
silente e melancólico,
rumo da eternidade
ele apenas responde
(se acaso é responder
a mistérios, somar-lhes
um mistério mais alto):

Amar, depois de perder.

Carlos Drummond de Andrade, em Antologia Poética

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Freireana n.I

Me perdi no mapa mundi
entre latitudes e logitudes de dúvidas.
Me assisti
ao me conceber inacabada.
Ser mais
é quase sempre um acidente trágico,
tantos não chegam a ser nesse riscado.
Eu me situo entre os vermes,
no ponto tão limitado da minha crença.
Saber que o que vejo é só o não ver
exige lealdade ao outro.
Um estado de alongamentos em direção ao diferente que é igual a mim.
Nós, não mais do que só o nosso cadáver.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Cancelem todas as crianças,
os homens não querem mais amar.
Se o destino é a distinção,
por que insistir em algum projeto?
Vendamos terapia, anti-alérgicos e corações de silicone.
Existir é uma fraude,
entre pinguins, vamos beber original.

Em tempo,
ainda no ponto e vírgula,
visto a fantasia recomendada do baú de minha infâcia.
Não é o álcool, não é a festa, nem a madrugada borrada.
É o outro verso deste revés.
O poeta passarinhando.
Sabiando nas nuvens estaladas no cucuruco róseo do céu.
O bordador de vaga-lumes,
nas franjas de minhas desesperanças.

Confie brilho às fantasias.
Esteja sempre um poeta
confiado
e
fingidor.
Um forjador de lantejoulas.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Obstinadamente, a lua, inconstante

Dona Doida


Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.

Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.

Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.

Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.

A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.

Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,

eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.


Adélia Prado

domingo, 22 de agosto de 2010

Historiador

Veio para ressuscitar o tempo
e escalpelar os mortos,
as condecorações, as liturgias, as espadas,
o espectro das fazendas submergidas,
o muro de pedra entre membros da família,
o ardido queixume das solteironas,
os negócios de trapaça, as ilusões jamais confirmadas
nem desfeitas.

Veio para contar
o que não faz jus a ser glorificado
e se deposita, grânulo,
no poço vazio da memória.
É importuno,
sabe-se importuno e insiste,
rancoroso, fiel.

Carlos Drummond de Andrade, em 'A Paixão Medida'

sábado, 21 de agosto de 2010


cantar,
luzir
no lixo cinza do universo.
Eu verterei o meu sol
e você o seu
com seus versos.
Se o sol se cansa
e a noite lenta
quer ir pra cama,
marmota sonolenta,
eu, de repente,
inflamo a minha flama
e o dia fulge novamente.

Brilhar para sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
gente é pra brilhar,
que tudo mais vá pro inferno,
este é o meu slogan
e o do sol


V. Maiakovski
- Vou me sentar em um lugar arejado.
- Por que? Vende pornô ai?
- Não sei. Quero um homem vira mundo.
- Esta história é uma farsa. Vá alimentar o gato.
- Aliás, o que há de errado comigo? Tenho um buraco no peito lemenskiando.
- Está tarde.
- Vou me deitar em uma cama verde.
- Eu sei. Está tarde.
- Desculpa, achei que era noite de lua cheia. Pensei em te contar alguns segredos.
- Amanhã.
- Por um triz prefiri a morte... Amanhã, então. Faço-te confissões e cafunés lentos se você me abrir a porta e se eu não esquecer de alimentar o gato. Vou dormir, então.
tum tum tum tum....

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.

É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Margarida Enlata

I

Foi de repente. Nesse de repente, ele ia indo pelo meio do aterro quando viu um canteiro de margaridas. Margarida era um negócio comum: ele via sempre margaridas quando ia para sua indústria, todas as manhãs. Margaridas não o comoviam, porque não o comoviam levezas. Mas exatamente de repente, ele mandou o chofer estacionar e ficou um pouco irritado com a confusão de carros às suas costas. O motorista precisou parar um pouco adiante, e ele teve que caminhar um bom pedaço de asfalto para chegar perto do canteiro. Estavam ali, independentes dele ou de qualquer outra pessoa que gostasse ou não delas: aquelas coisas vagamente redondas, de pétalas compridas e brancas agrupadas em torno dum centro amarelo, granuloso. Margaridas. Apanhou uma e colocou-a no bolso do paletó.
Diga-se em seu favor que, até esse momento, não premeditara absolutamente nada. Levou a margarida no bolso, esqueceu dela, subiu pelo elevador, cumprimentou as secretárias, trancou-se em sua sala. Como todos os dias, tentou fazer todas as coisas que todos os dias fazia. Não conseguiu. Tomou café, acendeu dois cigarros, esqueceu um no cinzeiro do lado direito, outro no cinzeiro do lado esquerdo, acendeu um terceiro, despediu três funcionários e passou uma descompostura na secretária. Foi só ao meio-dia que lembrou da margarida, no bolso do paletó. Estava meio informe e desfolhada, mas era ainda uma margarida. Sem saber exatamente por que, ficou pensando em algumas notícias que havia lido dias antes: o índice de suicídios nos países superdesenvolvidos, o asfalto invadindo as áreas verdes, a solidão, a dor, a poluição, a loucura e aquelas coisas sujas, perigosas e coloridas a que chamavam jovens. De repente, a luz. Brotou. Deu um grito:
—É isso!
Chamou imediatamente um dos redatores para bolar um slogan e esqueceu de almoçar e telefonou para suas plantações e mandou que preparassem a terra para novo plantio e ordenou a um de seus braços-direitos que comprasse todos os pacotes de sementes encontráveis no mercado depois achou melhor importá-las dos mais variados tamanhos cores e feitios depois voltou atrás e achou melhor especializar-se justamente na mais banal de todas aquela vagamente redonda de pétalas brancas e miolo granuloso e conseguiu organizar em poucos minutos toda uma equipe altamente especializada e contratou novos funcionários e demitiu outros e precisou tomar uma bolinha para suportar o tempo todo o tempo todo tinha consciência da importância do jogo exaustou afundou noite adentro sem atender aos telefonemas da mulher ao lado da equipe batalhando não podia perder tempo quase à meia-noite tudo estava resolvido e a campanha seria lançada no dia seguinte não podia perder tempo comprou duas ou três gráficas para imprimir os cartazes e mandou as fábricas de latas acelerar sua produção precisava de milhões de unidades dentro de quinze dias prazo máximo porque não podia perder tempo e tudo pronto voltou pelo meio do aterro as margaridas fantasmagóricas reluzindo em branco entre o verde do aterro a cabeça quase estourando de prazer e a sensação nítida clara definida de não ter perdido tempo. Dormiu.

II

No dia seguinte, acordou mais cedo do que de costume e mandou o chofer rodar pela cidade. Os cartazes. As ruas cheias de cartazes, as pessoas meio espantadas, desceu, misturou-se com o povo, ouviu os comentários, olhou, olhou. Os cartazes. O fundo negro com uma margarida branca, redonda e amarela, destacada, nítida. Na parte inferior, o slogan:

Ponha uma margarida na sua fossa.

Sorriu. Ninguém entendia direito. Dúvidas. Suposições: um filme underground, uma campanha antitóxicos, um livro de denúncia. Ninguém entendia direito. Mas ele e sua equipe sabiam. Os jornais e revistas das duas semanas seguintes traziam textos, fotos, chamadas:

O índice de poluição dos rios é alarmante.
Não entre nessa.
Ponha uma margarida na sua fossa.

Ou

O asfalto ameaça o homem e as flores.
Cuidado.
Use uma margarida na sua fossa.

Ou

A alegria não é difícil.
Fique atento no seu canto.
Basta uma margarida na sua fossa.

Jingles. Programas de televisão. Horário nobre. Ibope. Procura desvairada de margaridas pelas praças e jardins. Não eram encontradas. Tinham desaparecido misteriosamente dos parques, lojas de flores, jardins particulares. Todos queriam margaridas. E não havia margaridas. As fossas aumentaram consideravelmente. O índice de alcoolismo subiu. A procura de drogas também. As chamadas continuavam.

O índice de suicídios no país aumentou em 50%.
Mantenha distância.
Há uma margarida na porta principal.

Contratos. Compositores. Cibernéticos. Informáticos. Escritores. Artistas plásticos. Comunicadores de massa. Cineastas. Rios de dinheiro corriam pelas folhas de pagamento. Ele sorria. Indo ou vindo pelo meio do aterro, mandava o motorista ligar o rádio e ficava ouvindo notícias sobre o surto de margaridite que assolava o país. Todos continuavam sem entender nada. Mas quinze dias depois: a explosão.
As prateleiras dos supermercados amanheceram repletas do novo produto. As pessoas faziam filas na caixa, nas portas, nas ruas. Compravam, compravam. As aulas foram suspensas. As repartições fecharam. O comércio fechou. Apenas os supermercados funcionavam sem parar. Consumiam. Consumavam. O novo produto:
margaridas cuidadosamente acondicionadas em latas, delicadas latas acrílicas. Margaridas gordas, saudáveis, coradas em sua profunda palidez. Mil utilidades: decoração, alimentação, vestuário, erotismo. Sucesso absoluto. Ele sorria. A barriga aumentava. Indo e vindo pelo aterro, mergulhado em verde, manhã e noite — ele sorria. Sociólogos do mundo inteiro vieram examinar de perto o fenômeno. Líderes feministas. Teóricos marxistas. Porcos chauvinistas. Artistas arrivistas. Milionários em férias. A margarida nacional foi aclamada como a melhor do mundo: mais uma vez a Europa se curvou ante o Brasil.
Em seguida começaram as negociações para exportação: a indústria expandiu-se de maneira incrível. Todos queriam trabalhar com margaridas enlatadas. Ele pontificava. Desquitou-se da mulher para ter casos rumorosos com atrizes em evidência. Conferências. Debates. Entrevistas. Tornou-se uma espécie de guru tropical. Comentava-se em rodinhas esotéricas que seus guias seriam remotos mercadores fenícios. Ele havia tornado feliz o seu país. Ele se sentia bom e útil e declarou uma vez na televisão que se julgava um homem realizado por poder dar amor aos outros. Declarou textualmente que o amor era o seu país. Comentou-se que estaria na sexta ou sétima grandeza. Místicos célebres escreviam ensaios onde o chamavam de mutante, iniciado, profeta da Era de Aquarius. Ele sorria. Indo e vindo. Até que um dia, abrindo uma revista, viu o anúncio:

Margarida já era, amizade.
Saca esta transa:
O barato é avenca.

III

Não demorou muito para que tudo desmoronasse. A margarida foi desmoralizada. Tripudiada. Desprestigiada. Não houve grandes problemas. Para ele, pelo menos. Mesmo os empregados, tiveram apenas o trabalho de mudar de firma, passando-se para a concorrente. O quente era a avenca. Ele já havia assegurado o seu futuro — comprara sítios, apartamentos, fazendas, tinha gordos depósitos bancários na Suíça. Arrasou com napalm as plantações deficitárias e precisou liquidar todo o estoque do produto a preços baixíssimos. Como ninguém comprasse, retirou-o de circulação e incinerou-o.
Só depois da incineração total é que lembrou que havia comprado todas as sementes de todas as margaridas. E que margarida era uma flor extinta. Foi no mesmo dia que pegou a mania de caminhar a pé pelo aterro, as mãos cruzadas atrás, rugas na testa. Uma manhã, bem de repente, uma manhã bem cedo, tão de repente quanto aquela outra, divisou um vulto em meio ao verde. O vulto veio se aproximando. Quando chegou bem perto, ele reconheceu sua ex-esposa.
Ele perguntou:
– Procura margaridas?
Ela respondeu:
– Já era.
Ele perguntou:
– Avencas?
Ela respondeu:
– Falou.

Caio Fernando Abreu

terça-feira, 17 de agosto de 2010


Tudo isso dói. Mas eu sei que passa, que se está sendo assim é porque deve ser assim, e virá outro ciclo, depois. Para me dar força, escrevi no espelho do meu quarto: ‘tá certo que o sonho acabou, mas também não precisa virar pesadelo, não é?’ É o que estou tentando vivenciar. Certo, muitas ilusões dançaram - mas eu me recuso a descrer absolutamente de tudo, eu faço força para manter algumas esperanças acesas, como velas. Também não quero dramatizar e fazer dos problemas reais monstros insolúveis, becos-sem-saída. Nada é muito terrível. Só viver, não é? A barra mesmo é ter que estar vivo e ter que desdobrar, batalhar um jeito qualquer de ficar numa boa. O meu tem sido olhar pra dentro, devagar, ter muito cuidado com cada palavra, com cada movimento, com cada coisa que me ligue ao de fora. Até que os dois ritmos naturalmente se encaixem outra vez e passem a fluir.

Caio Fernando Abreu