domingo, 27 de março de 2011

Veranico

Está marcando meio-dia nos olhos dos gatos.
As sombras esconderam-se debaixo da barriga dos cavalos.
A cidadezinha modorreia...A tarde
Avança, lentamente, como o casco coberto de poeira
Como uma tartaruga
O poema empaca, o poeta adormece
De chatice
A vida continua indiferente.


Mario Quintana Em preparativos de viagem

sábado, 26 de março de 2011

- Ela é tão livre que um dia será presa.
– Presa por quê?
– Por excesso de liberdade.
– Mas essa liberdade é inocente?
– É. Até mesmo ingênua. 

– Então por que a prisão?
– Porque a liberdade ofende.

Clarice Lispector

quinta-feira, 24 de março de 2011

um poema quase ficcionado


Eu vejo-te beber numa fonte com minúsculas
mãos azuis, não, as tuas mãos não são minúsculas
são pequenas, e a fonte é em França
donde tu me escreveste aquela última carta e
que eu respondi e nunca mais soube nada de ti.
tu costumavas escrever poemas sem sentido sobre
ANJOS E DEUS, todos em maiúsculas, e tu
conhecias artistas famosos e a grande parte deles
eram teus amantes, e eu escrevi-te de novo, tudo está bem
continua, entra nas suas vidas, eu não sou ciumento
pois nunca nos conhecemos. estivemos perto um do outro em
Nova Orleãns, pouco tempo, mas nunca nos conhecemos, nunca
nos tocámos, e tu continuaste com os famosos e escreveste
sobre os famosos, e, claro, aquilo que descobriste
é que os famosos estão é preocupados
com a sua fama - não com a jovem e bela rapariga que está
na cama com eles, que lhes dá aquilo, e depois acorda
de manhã para escrever em maiúsculas poemas sobre
ANJOS E DEUS. nós sabemos que Deus está morto, eles
disseram-nos, mas ao ouvir-te deixei de ter certeza.
Talvez fossem as maiúsculas. tu eras uma das melhores
poetas femininas e eu disse aos editores, "ela, publiquem-na,
ela é louca mas é mágica. "nenhuma mentira no seu fogo".
Eu amo-te como um homem ama uma mulher que nunca tocou,
que só lhe escreve, e guarda dela poucas fotografias. eu teria te
amado mais se tivesse sentado num pequeno quarto
a enrolar um cigarro e a ouvir-te mijar no quarto-de-banho,
mas isso nunca aconteceu. as tuas cartas ficaram cada vez mais
tristes.
os teus amantes traíram-te. rapariga, escrevi mais tarde, todos
os amantes traem. mas isso não ajudou. tu disseste
que tinhas um banco onde ias chorar e era junto a uma ponte e
essa ponte era sobre um rio e tu sentavas-te lá todas as noites
e choravas por todos os amantes que te tinham magoado e
esquecido. eu escrevi-te de novo mas nunca
obtive resposta. um amigo escreveu-me e contou-me
do teu suicídio, 3 ou 4 meses depois de acontecer. se eu te tivesse
conhecido provavelmente seria injusto contigo
e tu comigo. foi melhor assim.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Amar: Fechei os olhos para não te ver
e a minha boca para não dizer...
E dos meus olhos fechados
desceram lágrimas que não enxuguei,
e da minha boca fechada nasceram sussurros
e palavras mudas que te dediquei...
O amor é quando a gente mora um no outro.

terça-feira, 22 de março de 2011

O que eu mais gosto


O que eu gosto do teu corpo é o sexo.
O que eu gosto do teu sexo é a boca.
O que eu gosto da tua boca é a língua.
O que eu gosto da tua língua é a palavra.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Amor, quantos caminhos até chegar a um beijo

Amor, quantos caminhos até chegar a um beijo,
que solidão errante até tua companhia!
Seguem os trens sozinhos rodando com a chuva.
Em taltal não amanhece ainda a primavera.
Mas tu e eu, amor meu, estamos juntos,
juntos desde a roupa às raízes,
juntos de outono, de água, de quadris,
até ser só tu, só eu juntos.
Pensar que custou tantas pedras que leva o rio,
a desembocadura da água de Boroa,
pensar que separados por trens e nações
tu e eu tínhamos que simplesmente amar-nos
com todos confundidos, com homens e mulheres,
com a terra que implanta e educa cravos.

domingo, 20 de março de 2011

Namorada

Quem não tem namorada é alguém que tirou ferias remuneradas de si mesmo. Namorar é a mais difícil das conquistas.
Difícil porque namorada de verdade é muito raro. Necessita de adivinhação, de pele, saliva, lagrimas, nuvem, quindim, brasa ou filosofia.

Paquera, gabiru, flerte, caso, transa, envolvimento, até paixão é difícil, mas namorada mesmo, é muito difícil. Não precisa ser a mais bonita, mas ser aquela a quem se quer proteger e quando se chega perto dela treme, sua frio e quase desmaia pedindo proteção. A proteção dela não precisa ser parrida, decidida ou bandoleira: Basta um olhar de compreensão ou mesmo de afeição. Quem não tem namorada não é quem não tem um amor: é quem não sabe o gosto de namorar. Se você tem 3 pretendentes, 2 paqueras, 1 envolvimento e 2 amantes, mesmo assim pode não ter nenhuma namorada.
Não tem namorada quem não sabe o gosto de chuva, de cinema depois das duas, medo do pai, sanduíche de padaria ou drible no trabalho. Quem transa sem carinho, quem se acaricia sem vontade de virar sorvete de lagartixa e quem ama sem alegria. Não tem namorada quem não sabe o valor de mãos dadas, de carinho escondido na hora em que passa o filme, de flor caçada no muro e entregue de repente, de poesia de Fernando Pessoa, Vinícius, Chico Buarque lida bem devagar, de gargalhada quando fala junto ou descobre meia rasgada, de ânsia de viajar junto para a Escócia, Europa, Oriente ou mesmo de metrô, bonde, nuvem, cavalo alado, tapete mágico ou foguete interplanetário.
Não tem namorada quem não gosta de dormir agarrado, fazer sesta abraçado, fazer compra juntos, quem não gosta de falar do próprio amor, nem ficar horas e horas olhando o mistério do outro dentro dos olhos dela, abobados de alegria pela lucidez do amor. Não tem namorada quem não descobre a criança própria e a da amada e sai com ela para parques, fliperamas, beira d’água, show do Milton Nascimento, bosques enluarados, luas de manhã ou musical da Metro.
Quem não tem música secreta com ela, quem não dedica livros, não recorta artigos, quem não se chateia com o fato de o seu bem ser paquerada. Quem ama sem gostar, quem gosta sem curtir, quem curte sem se aprofundar. Quem nunca sentiu o gosto de ser lembrado de repente no fim de semana, na madrugada ou no meio-dia do dia de sol em plena praia cheia de rivais; quem ama sem se dedicar, quem namora sem brincar, quem vive cheio de obrigações, quem faz sexo sem esperar o outro ir junto com ele, quem confunde solidão com ficar sozinho e em paz; quem não fala sozinho, não ri de si mesmo e quem tem medo de ser afetivo.
Se você não tem namorada porque não descobriu que o amor é alegre e você vive pesando duzentos quilos de grilos e medos, ponha a calça mais leve, aquela jeans velha, passeie de mãos dadas com o ar. Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a alma com flores, com leves fricções de esperança. De alma escovada e coração acelerado, saia do quintal de si mesmo e descubra o próprio jardim.
Acorde com o gosto de caqui e sorria lírios para quem passe debaixo de sua janela. Ponha intenções de quermesse em seus olhos. Beba licor de contos de fadas. Ande como se o chão estivesse repleto de sons de flauta e do céu descesse uma névoa de borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante a dizer frases sutis e palavras de galanteria.
Se você não tem namorada é porque ainda não enlouqueceu aquele pouquinho necessário para fazer a vida parar e de repente parecer que faz sentido.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Composição


Gosto da pele dele quase transparente,
quanto de suas entranhas nas dobras de seu abdômen.
lá repouso alguns caminhos impróprios.
ele me diz que sou violenta.
digo-lhe que atrás do seio tem um vaso
de vocação de lavanda,
a casa de assombração da mulher.
Tudo antes que era
dureza
escada
íntimos elogios
sumidouros de pequenas mãos
Furou o asfalto

E fez um espetáculo leve e sensível o nosso abraço molhado.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Adeus




Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade

Cabeceira

Intratável.
Não quero mais pôr poemas no papel
nem dar a conhecer minha ternura.
Faço ar de dura,
muito sóbria e dura,
não pergunto
"da sombra daquele beijo
que farei?"
É inútil
ficar à escuta
ou manobrar a lupa
da adivinhação.
Dito isto
o livro de cabeceira cai no chão.
Tua mão que desliza
distraidamente?
sobre a minha mão

Ana Cristina Cesar

quinta-feira, 10 de março de 2011

Estética da recepção


Turris eburnea.
Que o poeta brutalista é o espeto do cão.
Seu lar esburacado na lapa abrupta. Acolá ele vira onça
e cutuca o mundo com vara curta.
O mundo de dura crosta é de natural mudo,
e o poeta é o anjo da guarda
___________do santo do pau-oco.
Abre os poros, pipoca as pálpebras, e, com a pá virada,
mija em leque no cururu malocado na cruz da encruzilhada.
Cachaças para capotar e enrascar-se em palpos de aranha.

Ó mundo de surdas víboras sem papas nas línguas cindidas,
__________serpes, serpentes,
já que o poeta mimético se lambuza de mel silvestre,
carrega antenas de gafanhoto mas não posa de profeta:
________________________"Ó voz clamando no deserto."
Pois eu, pitonisa, falo que ele, poeta,
_______não permite que sua pele crie calo
dado que o mundo é de áspera epiderme
_____________como a casca rugosa de um fero rinoceronte
_____________ou de um extrapoemático elefante
posto que nas entranhas do poema os estofos do elefante
_______são sedas
_______________delicadezas
______________________carências de humano paquiderme.

É o mundo ocluso e mouco amasiado ao poeta gris e oco.
Caatinga de grotão seco atada à gamela de pirão pouco.
Suportar a vaziez.
Suportar a vaziez como um faquir que come sua própria fome
e, sem embargo, destituído quiçá do usucapião e usufruto do tino
com a debandada de qualquer noção de impresso prazo de jejum.

_____________Suportar a vaziez.
_____________Suportar a vaziez.
_____________Suportar a vaziez.


Sem fanfarras, o vazio não carece delas.

Noite de Natal

 
Noite de Natal.
Estou bonita que é um desperdício.
Não sinto nada
Não sinto nada, mamãe
Esqueci
Menti de dia
Antigamente eu sabia escrever
Hoje beijo os pacientes na entrada e na saída
com desvelo técnico.
Freud e eu brigamos muito.
Irene no céu desmente: deixou de
trepar aos 45 anos
Entretanto sou moça
estreando um bico fino que anda feio,
pisa mais que deve,
me leva indesejável para perto das
botas pretas
pudera


Ana Cristina Cesar