terça-feira, 28 de junho de 2011

A morte não representa, para o homem, uma possibilidade como as outras. Nem é ela um acidente, alguma coisa que o assalta de fora, como um ladrão, e lhe rouba drasticamente a existência. A morte significa, ao contrário, um elemento constitutivo fundamental do ser do homem, a invariante a partir da qual todas as variáveis ganham sentido e se enraízam dentro de uma perspectiva humana. O homem morre a cada instante de sua vida, e essa morte que ele traz consigo, no cerne de sua substância ontológica, é que lhe impõe, também, a cada momento, a tarefa de nascer. O ser humano nasce porque morre, nasce de sua morte, e os trabalhos e cuidados que o consomem nada mais são do que a premência que o punge de ter, para a realização de seu destino, um prazo limitado. Porque morremos, urge nascer. Porque somos finitos, existe em nós a vocação de arranhar o infinito, com a nossa insônia. Se estamos acordados, e vigiamos, é porque sabemos que nos está reservado um sono sem limite. Daí se compreende a maneira pela qual as idéias de vida e morte se encontram indissoluvelmente ligadas, de modo a formarem os pólos dialéticos que configuram a estrutura fundamental da existência. Quem aceita sua vida aceita sua morte. Quem assume o seu nascimento assume o seu fim. Desta forma, a consciência da morte, assunção da morte representam o mais alto ponto de individuação a que um ser humano possa chegar. Aceitando a sua morte, o homem se aceita total e absolutamente, pois toma como centro de referência, para significar-se, a sua possibilidade mais radical e absoluta.


Hélio Pellegrino

segunda-feira, 27 de junho de 2011

A Um Ausente

Tenho razão de sentir saudade,

tenho razão de te acusar.

Houve um pacto implícito que rompeste

e sem te despedires foste embora.

Detonaste o pacto.

Detonaste a vida geral, a comum aquiescência

de viver e explorar os rumos de obscuridade

sem prazo sem consulta sem provocação

até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.

Teu ponteiro enloqueceu, enloquecendo nossas horas.

Que poderias ter feito de mais grave

do que o ato sem continuação, o ato em si,

o ato que não ousamos nem sabemos ousar

porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,

de nossa convivência em falas camaradas,

simples apertar de mãos, nem isso, voz

modulando sílabas conhecidas e banais

que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.

Sim, acuso-te porque fizeste

o não previsto nas leis da amizade e da natureza

nem nos deixaste sequer o direito de indagar

porque o fizeste, porque te foste.
 
 Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Poema da Necessidade

























É preciso casar João,
é preciso suportar António,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir nós todos.

...É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.

 

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbedo,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens,
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar o FIM DO MUNDO.

Carlos Drummond de Andrade, em 'Sentimento do Mundo'

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Mãos

Côncavas de ter
Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender.

Sophia de Mello Breyner

sábado, 18 de junho de 2011

O Que Há

O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo, cansaço.
A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas -
Essas e o que falta nelas eternamente;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço, cansaço.
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser... E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço...

MURILOGRAMA A CECÍLIA MEIRELES


Dorme no saltério & na magnólia ,
Dorme no cristal & em Cassiopéia .
Dorme em Cassiopéia & no saltério ,
Dorme no cristal & na magnólia .
O século é violento demais para teus dedos
Dúcteis afeiçoados ao toque dos duendes :
O século, ácido demais para uma pastôra
De nuvens , aponta o revólver aos mansos
Inermes no guaiar & columbrando a paz .
Armamentos em excesso, parquesombras de menos
Se antojam agora ao homem , antes criado
Para dança , alegria & ritmos de paz .

A faixa do céu glauco indica-te serena ,
Acolhe a ode trabalhada , nãogemente
Que ainda quer manter linguagem paralém .
Altas nuvens sacodem as crinas espiando
Teu sono incoativo . A noite vai inoltrada ,
Prepara úsnea de sêda à ságoma da tua lira
Que subjaz no corpo interrompido , diamante
Ahimè ! mortal que os deuses reclamaram .

Dorme em Cassiopéia & no saltério ,
Dorme no cristal & na magnólia .

Roma 1964

quarta-feira, 15 de junho de 2011

MURILOGRAMA A C. D . A .

No meio do caminho da poesia
selva selvaggia
Território adrede
Desarrumado
Onde palavras-feras nos agridem
Encontrei Carlos Drummond de Andrade
esquipático fino
flexível
ácido
lúcido
até o osso .
Armado
De lente compasso
Gramática não-euclidiana
& humour nuclear
Na oficina-laboratório
Itabiromem claroenigmático
Extrai do léxico
Uma lição de coisas .
Enxuto abre o manúbrio
À brisa sarcástica de Minas .
Dorme acordado .

Glossógrafo declancha
Com seus olhos de termômetro
A máquina do mundo da linguagem
Em contacto contraste atrito & rotação
Diurna .

Deflagrando história & semântica
Radiografia o
Desgaste do mundo coisificado .
Destrói o córtex do verbo
Dispara o contexto insólito
Descobre a “obsolescence”
os “rifiuti”
os restos do zero .
Contrapõe às galáxias poetizadas
O inframundo
Antigaláxias da náusea
das fezes
da poeira
do mêdo
Os labirintos íntimos
A paisagem delével do sexo
A paisagem de smog
Os pontapés do amor
A insuportável dor-de-corno
A esquírola de osso do homem .

“Balançando
entre o real e o irreal”,
Investido
Do “solene
sentimento de morte”
O poeta no seu trabalho ácido
Confessando-se
confessa-nos .

E agora, Josés?
Além de Cummings & Pound
Além de Sousândrade
Além de “Noigandres”
Além de “Terceira Feira”
Além de Poesia-Praxis
Além do texto “Isso é aquilo”
Sereis teleguiados ?
Resta a ságoma de Orfeu
Com discurso ou sem .

Sôbre a página aberta
Único campo branco
Drummond fazendeiro da cidade
(Esperamos)
Lançará de nôvo
a semente .

 Roma 1965
Murilo Mendes

terça-feira, 14 de junho de 2011

Toque


É TEMPO de ter um amuleto amarelo com um amor bordado dentro
É tempo de cavar as palavras secas no fundo do pescoço
É tempo de descobrir o rubi que você pensa que é uma pedra nos sapatos
É tempo do tempo morto morrer dentro de você
É tempo de nascer o poeta inato que você é

O abismo do ser sozinho fica nos limites das forças
Atravessar por inteiro depende da prática do timoneiro
É desviar o barco por águas claras e maré calma
Pois os limites das forças são as divisas com a alma
Aguenta o barco firme
Aguenta o barco
Com muita calma
Irmão

Você é o juiz que se julgou perdido
Sua própria mão bateu as três marteladas
Pregando a sentença de sua perdição
Existe um oásis em cada um dos lados de teu corpo quadrado
Escolher seja sul seja norte seja leste seja oeste
Adiante deserto e oásis são a mesma coisa
As mesmas partes do caminho andado
Não existe caminho errado
Existe preguiça de continuar pra qualquer um dos lados

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Sexo em Moscou

Sára Saudhová

Quando comecei a passear meus dedos
Pela sua marighelazinha já ficando molhada
Ela teve medo e recuou na resitência:
- Stálin! Stálin!
Mas depois deu uma olhada
Viu meu sputinik pronto a entrar em órbita
Exclamou feliz da vida:
- Que vara! Que vara!
- Que nikita mais krutschev!
Eu era o sessenta
Ela era lunática rainha lunik 9
Me sentia como se estivesse dando um cheque-mate
No próprio Karpov
E por não ser nem fidel e nem castro
Lambi sua rosa de luxemburgo
E a linda bolchevique geminha tesudinha:
- Ai língua de seda,
Maravilhosa,
Me lenine toda, meu bem
Me lenine toda,
Todinha!
Arranhava minhas costas com suas unhas de mil caranguejos
E sussurrava entre beijos:
- Marx! Marx!
E o colchão de molas rangia:
- Mao tse tung! Mao tse tung!
Me chamou de seu tesão
Maiokovsky do sertão
Engels azul do meio dia
Poeta do real
Sua fantasia
Olhou-me nos olhos e disse:
- Tú és o meu Brejnev!
E ficamos por um tempão
Deitados no colchão de neve
E nos amávamos
Esperando o intervalo
Entre uma e outra greve
Trotsky! Ela tinha uma bezerra gregoriana
Que deixava lamarcas
E quando o êxtase atingiu ao seu máximo górki
Quando estava prestes a acontecer um orgasmo dissidente
Sussurou rangendo os dentes
- Chove dentro de mim,
Chove, chove,
Gorbatchev!

domingo, 12 de junho de 2011

Cântico negro




"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

Da mais alta janela da minha casa


Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade.

E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.


Fernando Pessoa

sábado, 11 de junho de 2011

Ascensão

Marc Dumas
Depois que iniciei a minha ascensão para a infância,
Foi que vi como o adulto é sensato!
Pois como não tomar banho nu no rio entre pássaros?
Como não furar lona de circo para ver os palhaços?
Como não ascender ainda mais até a ausência da voz ?
Ausência da voz é infantia, com t, em latim.)
Lá onde a gente pode ver o próprio feto do verbo -
ainda sem movimento.
Aonde a gente pode enxergar o feto dos nomes -
ainda sem penugens.
Por que não voltar a apalpar as primeiras formas da
pedra. A escutar
Os primeiros pios dos pássaros. A ver
As primeiras coisas do amanhecer.
Como não voltar para onde a invenção está virgem?
Por que não ascender de volta para o tartamudo!

Manuel de Barros

Alguém parado

Scott Rhea

alguém parado
é sempre suspeito
de trazer como eu trago
um susto preso no peito,
um prazo, um prazer, um estrago,
um de qualquer jeito,
sujeito a ser tragado
pelo primeiro que passar
parar dá azar

Paulo Leminski


domingo, 5 de junho de 2011

Votos poéticos


Você, amor, acelera o tantan.
Na primeira estrofe,
caminha-se pelo palco temeroso do novo convite. 
Coragem, coragem
Enquanto finas raízes arrepiam camadas mais grossas do coração.
É preciso girar
E vocês giraram.
É preciso suar
e vocês suaram.
É preciso abrir janelas com paisagens de flores, de pedras, de limos, 
de paredões e cachoeiras,
de plantas carnívoras e estranhas espécimes em decomposição. 
Arrastar sombras que até mesmo retardam os passos em direção.
Mas a largura exata de seus braços,
na segunda estrofe,
ajeitou os versos que aceleram os sonhos dos homens. 
Largo na medida necessária da respiração.
Estreito para que ensaiassem as primeiras audições.
Nesse encontro um mundo insistente a crescer.
Um embrião de folhas estendidas para a alameda da paixão.
É quando se fazem ventos, estalos e redemoinhos,
como forças da natureza acertando o então vivido para um único refrão que faz TUM TUM.
Suas florestas em pretéritos acalmados
e colossais promessas debruçadas na cadencia da nova casa.
A boca finalmente liberta para o recomeço.
A terceira estrofe: o mundo grande e pequeno do amor cotidiano.
Se vocês estão aqui hoje
(Não só nessa festa), 
mas nessas mãos que se entrelaçam 
É porque sobre o caule do tempo, existe um desejo:
Aqui com essa mulher
Aqui com esse homem
Há a coragem do enfrentamento de se caminhar ao lado
Porque você, amor,
aveluda o assoalho íngreme e irregular da vida.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Embriaga-te


Deve- se estar sempre bêbado. É a única questão.
A fim de não se sentir o fardo horrível do tempo,
que parte tuas espáduas e te dobra sobre a terra.
É preciso te embriagares sem trégua.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude?
A teu gosto, mas embriaga-te.
E se alguma vez sobre os degraus de um palácio,
sobre a verde relva de uma vala,
na sombria solidão de teu quarto,
tu te encontrares com a embriaguez já minorada ou finda,
peça ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio,
a tudo aquilo que gira, a tudo aquilo que voa,
a tudo aquilo que canta, a tudo aquilo que fala, a tudo aquilo que geme.
Pergunte que horas são. E o vento, a vaga, a estrela, o pássaro,
o relógio, te responderão.
É hora de se embriagar !!!
Para não ser como os escravos martirizados pelo tempo, embriaga-te.
Embriaga-te sem cessar. De vinho, de poesia ou de virtude.
A teu gosto.


Charles Baudelaire