sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Um dos lugares onde coloco o sentimento do Natal

Foto: Marcelo Valle. Itaobim, MG
Qual é o lugar mais importante da sua casa? Eu acho que essa é uma boa pergunta para início de uma sessão de psicanálise. Porque quando a gente revela qual é o lugar mais importante da casa, a gente revela também o lugar preferido da alma. Nas Minas Gerais onde nasci o lugar mais importante era a cozinha. Não era o mais chique e nem o mais arrumado. Lugar chique e arrumado era a sala de visitas, com bibelôs, retratos ovais nas paredes, espelhos e tapetes no chão. Na sala de visitas as crianças se comportavam bem, era só sorrisos e todos usavam máscaras. Na cozinha era diferente: a gente era a gente mesmo, fogo, fome e alegria.
"Seria tão bom, como já foi...", diz a Adélia. A alma mineira vive de saudade. Tenho saudade do que já foi, as velhas cozinhas de Minas, com seus fogões de lenha, cascas de laranja secas, penduradas, para acender o fogo, bule de café sobre a chapa, lenha crepitando no fogo, o cheiro bom da fumaça, rostos vermelhos. Minha alma tem saudades dessas cozinhas antigas...
Fogo de fogão de lenha é diferente de todos os demais fogos. Veja o fogo de uma vela acesa sobre uma mesa. É fogo fácil. Basta encostar um fósforo aceso no pavio da vela para que ela se acenda. Não é preciso nem arte nem ciência. Até uma criança sabe. Só precisa um cuidado: deixar fechadas as janelas para que um vento súbito não apague a chama. O fogo do fogão é outra coisa. Bachelard notou a diferença: "A vela queima só. Não precisa de auxílio.
       A chama solitária tem uma personalidade onírica diferente da do fogo na lareira. O homem, diante de um fogo prolixo pode ajudar a lenha a queimar, coloca uma acha suplementar no tempo devido. O homem que sabe se aquecer mantém uma atitude de Prometeu. Daí seu orgulho de atiçador perfeito..." Fogo de lareira é igual ao fogo do fogão de lenha. Antigamente não havia lareiras em nossas casas. O que havia era o fogo do fogão de lenha que era, a um tempo, fogo de lareira e fogo de cozinhar.
As pessoas da cidade, que só conhecem a chama dos fogões a gás, ignoram a arte que está por detrás de um fogão de lenha aceso. Se os paus grossos, os paus finos e os gravetos não forem colocados de forma certa, o fogo não pega. Isso exige ciência. E depois de aceso o fogo é preciso estar atento. É preciso colocar a acha suplementar, do tamanho certo, no lugar certo. Quem acende o fogo do fogão de lenha tem de ser também um atiçador.
O fogão de lenha nos faz voltar "às residências de outrora, as residências abandonadas mas que são, em nossos devaneios, fielmente habitadas" (Bachelard). Exupèry, no tempo em que os pilotos só podiam se orientar pelos fogos dos céus e os fogos da terra, conta de sua emoção solitária no céu escuro, ao vislumbrar, no meio da escuridão da terra, pequenas luzes: em algum lugar o fogo estava aceso e pessoas se aqueciam ao seu redor.
Já se disse que o homem surgiu quando a primeira canção foi cantada. Mas eu imagino que a primeira canção foi cantada ao redor do fogo, todos juntos se aquecendo do frio e se protegendo contra as feras. Antes da canção, o fogo. Um fogo aceso é um sacramento de comunhão solitária. Solitária porque a chama que crepita no fogão desperta sonhos que são só nossos. Mas os sonhos solitários se tornam comunhão quando se aquece e come.
Nas casas de Minas a cozinha ficava no fim da casa. Ficava no fim não por ser menos importante mas para ser protegida da presença de intrusos. Cozinha era intimidade. E também para ficar mais próxima do outro lugar de sonhos, a horta-jardim. Pois os jardins ficavam atrás. Lá estavam os manacás, o jasmim do imperador, as jabuticabeiras, laranjeiras e hortaliças. Era fácil sair da cozinha para colher xuxús, quiabo, abobrinhas, salsa, cebolinha, tomatinhos vermelhos, hortelã e, nas noites frias, folhas de laranjeira para fazer chá.
Ah! Como a arquitetura seria diferente se os arquitetos conhecessem também os mistérios da alma! Se Niemeyer tivesse feito terapia, Brasília seria outra. Brasília é arquitetura de arquitetos sem alma. Se eu fosse arquiteto minhas casas seriam planejadas em torno da cozinha. Das coisas boas que encontrei nos Estados Unidos nos tempos em que lá vivi estava o jeito de fazer as casas: a sala de estar, a sala de jantar, os livros, a escrivaninha, o aparelho de som, o jardim, todos integrados num enorme espaço integrado na cozinha. Todos podiam participar do ritual de cozinhar, enquanto ouviam música e conversavam. O ato de cozinhar, assim, era parte da convivência de família e amigos, e não apenas o ato de comer. Eu acho que nosso costume de fazer cozinhas isoladas do resto da casa é uma reminiscência dos tempos em que elas eram lugar de cozinheiras negras escravas, enquanto as sinhás e sinhazinhas se dedicavam, em lugares mais limpos, a atividades próprias de dondocas como o ponto de cruz, o frivolité, o crivo, a pintura e a música. Se alguém me dissesse, arquiteto, que o seu desejo era uma cozinha funcional e prática, eu imediatamente compreenderia que nossos sonhos não combinavam, delicadamente me despediria e lhes passaria o cartão de visitas de um arquiteto sem memórias de cozinhas de Minas.
As cozinhas de fogão de lenha não resistiram ao fascínio do progresso. As donas de casa, em Minas, por medo de serem consideradas pobres, dotaram suas casas de modernas cozinhas funcionais, onde o limpíssimo e apagado fogão à gás tomou o lugar do velho fogão de lenha. As cozinhas, agora, são extensões da sala de visitas. Mas isto é só para enganar. A alma delas continua a morar nas cozinhas velhas, agora transferidas para o quintal, onde a vida é como sempre foi. Lá é tão bom, porque é como já foi.
Eu gostaria de ser muitas coisas que não tive tempo e competência para ser. A vida é curta e as artes são muitas. Gostaria de ser pianista, jardineiro, artista de ferro e vidro - talvez monge. E gostaria de ter sido um cozinheiro. Babette. Tita. Meu pai adorava cozinhar. Eu me lembro dele preparando os peixes, cuidadosamente puxando a linha que percorre o corpo dos papa-terras, curimbas, para que não ficassem com gosto de terra. E me lembro do seu rosto iluminado ao trazer para a mesa o peixe assado no forno.
Faz tempo, num espaço meu, eu gostava de reunir casais amigos uma vez por mês para cozinhar. Não os convidava para jantar. Convidava para cozinhar. A festa começava cedo, lá pelas seis da tarde. E todos se punham a trabalhar, descascando cebola, cortando tomates, preparando as carnes. Dizia Guimarães Rosa: "a coisa não está nem na partida e nem na chegada, mas na travessia." Comer é a chegada. Passa rápido. Mas a travessia é longa. Era na travessia que estava o nosso maior prazer. A gente ia cozinhando, bebericando, beliscando petiscos, rindo, conversando. Ao final, lá pelas onze, a gente comia. Naqueles tempos o que já tinha sido voltava a ser. A gente era feliz.
Sinto-me feliz cozinhando. Não sou cozinheiro. Preparo pratos simples. Gosto de inventar. O que mais gosto de fazer são as sopas. Vaca atolada, sopa de fubá, sopa de abóbora com maracujá, sopa de beringela, sopa da mandioquinha com manga, sopa de coentro... Você já ouviu falar em sopa de coentro? É sopa de portugueses pobres, deliciosa, com muito azeite e pão torrado. A sopa desce quente e, chegando no estômago, confirma...A culinária leva a gente bem próximo das feiticeiras. Como a Babette (A festa de Babette) e a Tita (Como água para chocolate)... (Correio Popular, Caderno C, 19/03/2000.)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Aniversário de 95 anos do Poeta

Nasci para administrar o à-toa
o em vão
o inútil.
Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã
no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também
sabedoria mineral.

Manoel de Barros

domingo, 18 de dezembro de 2011

A canção da vida

A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)

Ame o seu domingo, a sede, a roda, o escuro, o sono, a peleja

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Tática e Estratégia

Minha tática é olhar-te
aprender como tu és
querer-te como tu és

minha tática é falar-te
e escutar-te
construir com palavras
uma ponte indestrutível

minha tática é ficar em tua lembrança
não sei como nem sei
com que pretexto
porém ficar em ti

minha tática é ser franco
e saber que tu és franca
e que não nos vendemos
simulados
para que entre os dois
não haja cortinas
nem abismos

minha estratégia é em outras palavras
mais profunda e mais simples

minha estratégia é que um dia qualquer
não sei como nem sei
com que pretexto
por fim me necessites.

Mario Benedetti

Feita a volta olímpica: retorno


Vem amor, vem cantar

Pois meus olhos
Ficam querendo chorar
Deixe a mágoa pra depois
O amor é mais importante a dois.

Chora sanfona sentida
Em meu peito gemendo
Vai machucando
E o meu peito de amor vai morrendo

Quanto mais chora
Me entrego todinho ao amor
E teu gemido disfarça
Em m´alma essa dor

sábado, 10 de dezembro de 2011

Encarar olhar


Diante da vida o que se põe é o que se tem.
O mistério não te responderá aquilo que não se pergunta.
Estar feliz, guerreiro e firme exige
Atenção flutuante...
Vigilância preguiçosa.

Não confundir firmeza com rigidez.
É preciso ter o corpo e a alma firmemente soltos -
assim como uma criança -,
para dar-se a ausência que suporta uma escolha,
aceitar os termos que  prescindem os projetos que não se realizam,
a doença e a morte que acusam o tempo de vigor da vida.
A morte nada mais do que o recado definitivo da vida.
O aviso de que é no hoje que se deve está.

Não busque no outro aquilo que você quer ser.
É no detalhe que se deve colocar  felicidade,
caso contrário, enlouquece-se.
Não aceite que sua alma se quebre cristalizada
pela tradição, pelo medo, pela solidão.
Entender que esses e seus reveses são em potência e em limite a substância de nossa existência.
Quanto mais jovem lamber suas sombras e monstros,
mais será amigo de si próprio.

Aceita que viver é complexo mesmo.
é chama que aquece e queima.

E que o infinito se reduz a uma caminhada breve 
entre as estrelas e o corpo e de volta às estrelas.

Eva Luna


Era uma vez uma mulher cujo ofício era contar histórias. Ela andava por todo lado oferecendo sua mercadoria, relatos de aventuras, de suspense, de horror ou luxúria, tudo a preço de justo. Certo meio-dia de agosto, estava no meio de uma praça, quando viu caminhar em sua direção um homem altivo, magro e espigado como um sabre. Vinha cansado, com uma arma no braço, coberto de poeira de lugares distantes e, quando parou, ela percebeu um cheiro de tristeza e, imediatamente, soube que aquele homem vinha da guerra. A solidão e a violência tinham-lhe introduzido estilhaços de metal no coração e o haviam privado das faculdades de amar a si mesmo. É você a que conta histórias?, perguntou o estranho. Para servi-lo, respondeu ela. O homem pegou cinco moedas de ouro e a pôs na mão da mulher. Então, venda-me um passado, porque o meu está cheio de sangue e de gemidos, não me serve para percorrer a vida, estive em tantas batalhas, que lá esqueci até o nome de minha mãe, disse ele. Ela não pode negar-se, por recear que o estranho caísse na praça, transformado em um punhado de poeira, como finalmente acontece aos que não possuem boas lembranças. Disse-lhe para sentar-se a seu lado e, ao ver seus olhos de perto, sentiu uma pena imensa, um desejo invencível de aprisioná-lo nos braços. Começou a falar. Durante toda a tarde e toda a noite, esteve construindo um bom passado para aquele guerreiro, colocando nisso sua vasta experiência e a paixão que o desconhecido lhe despertara. Foi um longo discurso, pois ela desejou ofertar-lhe um destino de novela, tendo que inventar tudo, desde o nascimento dele até o dia presente, com sonhos, anseios e segredos, a vida de seus pais e irmãos, até a geografia e história de sua terra. Finalmente amanheceu e, às primeiras claridades do dia, ela comprovou que o cheiro da tristeza se esfumara. Suspirou, fechou os olhos, e ao sentir o espírito vazio como o de um recém nascido, compreendeu que na ânsia de satisfazê-lo, tinha-lhe entregue sua própria memória, não sabia mais o que era dela e quanto agora pertencia a ele, os dois passados haviam ficado enovelados em uma só trança. Ela penetrava até o fundo em sua própria história e não podia mais recolher as palavras, mas tampouco quis fazê-lo, e então entregou-se ao prazer de fundir-se com ele, na mesma história.
Isabel Allende em Eva Luna (1987, pp.300-301)

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

À meia-noite, pelo telefone

À meia-noite, pelo telefone,
conta-me que é fulva a mata do teu púbis.
Outras notícias
do corpo não quer dar, nem de seus gostos.
Fecha-se em copas:

"Se não vem depressa até aqui
nem eu posso correr à sua casa,
que seria de mim até o amanhecer?"
Concordo, calo-me.

Carlos Drummond de Andrade

O poeta Aprendiz

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Talvez a música mais linda da galáxia

Nada, Esta Espuma




Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco 
quero tanto os seios da sereia. 


Ana Cristina Cesar

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Há tantos diálogos

Diálogo com o ser amado
o semelhante
o diferente
o indiferente
o oposto
o adversário
o surdo-mudo
o possesso
o irracional
o vegetal
o mineral
o inominado

Diálogo consigo mesmo
com a noite
os astros
os mortos
as ideias
o sonho
o passado
o mais que futuro

Escolhe teu diálogo
e
tua melhor palavra
ou
teu melhor silêncio.
Mesmo no silêncio e com o silêncio
dialogamos.

Carlos Drummond de Andrade, in 'Discurso da Primavera'

domingo, 27 de novembro de 2011

Procurar o quê?

O que a gente procura muito e sempre não é isto nem aquilo.
É outra coisa.
Se me perguntam que coisa é essa,
não respondo,
porque não é da conta de ninguém o que estou procurando.
Mesmo que quisesse responder, eu não podia.
Não sei o que procuro.
Deve ser por isso mesmo que procuro.
Me chamam de bobo porque vivo olhando aqui e ali, nos ninhos, nos caramujos, nas panelas, nas folhas de bananeiras, nas gretas do muro, nos espaços vazios.
Até agora não encontrei nada.
Ou encontrei coisas que não eram a coisa procurada sem saber, e desejada.
Meu irmão diz que não tenho mesmo jeito,
porque não sinto o prazer dos outros na água do açude, na comida, na manja,
e procuro inventar um prazer que ninguém sentiu ainda.
Ele tem experiência de mato e de cidade,
 sabe explorar os mundos, as horas.
Eu tropeço no possível,
e não desisto de fazer a descoberta do que tem dentro da casca do impossível.
 Um dia descubro.
Vai ser fácil, existente, de pegar na mão e sentir.
Não sei o que é.
Não imagino forma, cor, tamanho.
 Nesse dia vou rir de todos.
Ou não.
A coisa que me espera, não poderei mostrar a ninguém.
Há de ser invisível para todo mundo,
 menos para mim,
que de tanto procurar fiquei com merecimento de achar e direito de esconder
Carlos Drummond de Andrade, Em Boitempo

sábado, 26 de novembro de 2011

Flor de Maracujá

Lá no avarandado na luz do meio dia
O segredo nos teus olhos tanta coisa me dizia
O cabelo solto ao vento, o teu jeito de olhar
E no seu corpo moreno, a flor de maracujá
Dia de sol, cheiro de flor
Gosto de mar, amor
Na tua cor, luz do luar
Vento que vem do mar
Roda, gira vira o vento, meu amor vai te levar
Bem pra la do fim do mundo, onde eu vou te chamar
O cabelo solto ao vento
O teu jeito de olhar
E no seu corpo moreno, a flor de maracujá
Dia de sol, cheiro de flor
Gosto de mar, amor
Na tua cor, luz do luar
Vento que vem do mar
Roda, gira vira o vento, meu amor vai te levar
Bem pra la do fim do mundo, onde eu vou te chamar
Lá no avarandado...
Na luz do meio dia...

João Donato & Lysias Enio

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Andejo


Nem feliz
Nem triste
Contra mim mesmo
Pelejo.




Não me prendo a nada que me defina. Sou companhia, mas posso ser solidão. tranqüilidade e inconstância, pedra e coração. Sou abraços, sorrisos, ânimo, bom humor, sarcasmo, preguiça e sono. Música alta e silêncio. Serei o que você quiser, mas só quando eu quiser. Não me limito, não sou cruel comigo! Serei sempre apego pelo que vale a pena e desapego pelo que não quer valer… Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato. Ou toca, ou não toca.

Clarice Lispector

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Eu quero amar, amar perdidamente!

Amar só por amar: aqui…além…
Mais este e aquele, o outro e toda a gente….
Amar!Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!…
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar.

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder… pra me encontrar…

Florbela Espanca

domingo, 20 de novembro de 2011

Amar


Esse é o desejo que o corpo enfrenta,
inábil em reagir à ação da rosa
Essa vontade pertencente ao inteiro
de compor um dicionário ocupado na reinvenção de cores e cheiros
a formas circulares que movimentam a Cia dos prazeres.
O convite é humano,
existem curvas em frequências retumbantes.
O vento que faz é humano,
levanta as rotas da saia do vestido.
Mas o texto não,
o texto não cabe em explicações científicas ou poéticas.
Nem metafísicas,
já que recobre as estrelas da constelação de volans
e ainda a zona infinitesimal da faixa do audível e também do visível.
É certa a condenação.
 Passaras por termos precisos:
quem não se arrisca, não terá fôlego para gritar.
Mesmo entre antolhos, serás tocado pelo o que é da natureza das fibras.
O exílio e o sossego, seus.
Beberas na boca enquanto que seu acolchoado mundo enfrentará o dragão.
Depois do fogo talvez encontre aquele mirante.
Se fores sábio talvez construa ali uma fogueira.
Ai, então, estarás ditoso em despir a pele dos titãs
e ali preparar o buraco no qual não terás receio em dormir.
Ou não.
Talvez continue cioso da rotação do sol.
Seja como for,

as variações e os improvisos merecem a galáxia.

Quatro corvos

AQUELE MOMENTO

Quando ergueram o focinho da pistola
Fumegando azul
Como se ergue um cigarro do cinzeiro
E a única face restante no mundo
Jazia rompida
Entre mãos que relaxavam, sendo tarde demais
E as árvores se fecharam para sempre
E as ruas se fecharam para sempre
E o corpo jazia sobre o entulho
Do mundo abandonado
Junto dos utensílios abandonados
Expostos para sempre à infinitude
Corvo teve que ir atrás de algo para comer.

LINHAGEM
No princípio era o Grito
Que gerou o Sangue
Que gerou o Olho
Que gerou o Medo
Que gerou a Asa
Que gerou o Osso
Que gerou o Granito
Que gerou a Violeta
Que gerou a Guitarra
Que gerou o Suor
Que gerou Adão
Que gerou Maria
Que gerou Deus
Que gerou o Nada
Que gerou o Nunca
Nunca Nunca Nunca
Que gerou Corvo
Gritando por Sangue
Larvas, migalhas
Qualquer coisa
Implumes cotovelos tremendo
na imundície do ninho.

SANGUEZINHO
Ô sanguezinho, nas montanhas se escondendo das montanhas
Machucado por estrelas e pingando sombra
Comendo a terra medicinal.
Ô sanguezinho, desossadinho esfoladinho
Arando com a carcaça de um pintarroxo.
Ceifando o vento e debulhando as pedras.
Ô sanguezinho, batucando numa caveira de vaca
Dançando com as patas de um mosquito
Com uma tromba de elefante com uma cauda de crocodilo.
Ficou tão sabido ficou tão terrível
Sugando as tetas mofadas da morte.
Pousa no meu dedo, canta no meu ouvido, ô sanguezinho.

TESTE JUNTO AO PORTÃO DO VENTRE
De quem são esses pezinhos ossudos? Da morte.
De quem é essa cara arrepiada e chamuscada? Da morte.
De quem são esses pulmões ofegantes? Da morte.
De quem é esse macacão de músculos? Da morte.
De quem são essas vísceras indizíveis? Da morte.
De quem é essa discutível cachola? Da morte.
E todo esse sangue enxovalhado? Da morte.
E esses olhos de eficácia mínima? Da morte.
E essa linguinha maldosa? Da morte.
E essa vigília ocasional? Da morte.
Doado, roubado ou detido à espera de julgamento?
Detido.
De quem é a terra inteira chuvosa e pedregosa? Da morte.
De quem é o espaço inteiro? Da morte.
Quem é mais forte que a esperança? A morte.
Quem é mais forte que a vontade? A morte.
E mais forte que o amor? A morte.
E mais forte que a vida? A morte.
Mas quem é mais forte que a morte?
Eu, evidente.
Pode passar, Corvo.

Ted Hughes
Tradução Sérgio Alacides

quarta-feira, 16 de novembro de 2011


Há momentos na vida em que sentimos tanto
a falta de alguém que o que mais queremos
é tirar esta pessoa de nossos sonhos
e abraçá-la.
Sonhe com aquilo que você quiser.
Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance
de fazer aquilo que se quer.
Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.
As pessoas mais felizes
não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor
das oportunidades que aparecem
em seus caminhos.
A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem
a importância das pessoas que passam por suas vidas.
O futuro mais brilhante
é baseado num passado intensamente vivido.
Você só terá sucesso na vida
quando perdoar os erros
e as decepções do passado.
A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar
duram uma eternidade.
A vida não é de se brincar
porque um belo dia se morre.

Clarice Lispector

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Confissão





















Que esta minha paz e este meu amado silêncio
Não iludam a ninguém
Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta
Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios
Acho-me relativamente feliz
Porque nada de exterior me acontece...
Mas,
Em mim, na minha alma,

Pressinto que vou ter um terremoto!
Mário Quintana

domingo, 13 de novembro de 2011

O POEMA

Um poema como um gole dágua bebido no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre
                                              na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa
                                             condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.

Mario Quintana, Do livro "O Aprendiz de Feiticeiro", 

Tu Queres Sono: Despe-te dos Ruídos


Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.

 Ana Cristina Cesar

As minhas mãos

As minhas mãos mantêm as estrelas,
Seguro a minha alma para que se não quebre
A melodia que vai de flor em flor,
Arranco o mar do mar e ponho-o em mim
E o bater do meu coração sustenta o ritmo das coisas.

Sophia de Mello Breyner
Em Obra Poética

Porque


Amor meu, minhas penas, meu delírio,
aonde quer que vás, irá contigo
meu corpo, mais que um corpo, irá uma alma,
sabendo embora ser perdido intento

o de cingir-se forte de tal modo
que, desde então se misturando as partes,
resultaria o mais perfeito andrógino
nunca citado em lendas e cimélios.

Amor meu, punhal meu, fera miragem
consubstanciada em vulto feminino,
por que não me libertas de teu jugo,
por que não me convertes em rochedo,

por que não me eliminas do sistema
dos humanos prostrados, miseráveis,
por que preferes doer-me como chaga
e fazer dessa chaga meu prazer?

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 12 de novembro de 2011


Um beijo. Eles se beijam. Ele toma sua boca em sua boca, ela toma sua boca em sua boca, eles se beijam. Ele abre seus lábios à sua boca, à sua língua, ela abre seus lábios aos seus lábios, à sua boca, à sua língua, ela gira sua língua em sua boca, ele gira sua língua em sua boca, ele descobre seu beijo, ela descobre a sensação de seu beijo, sua língua doce em sua boca, sua língua doce contra sua língua, ele envolve sua língua em sua língua, ele a mistura, ela gira sua língua contra sua língua, eles se beijam, ela a mistura, eles se misturam, ela cede sua boca à sua boca, ele cede sua boca à sua boca, eles se dão um beijo, ela lhe dá um beijo e sua língua, ele acaricia sua língua em sua boca, ela acaricia sua língua em sua boca, ela o deixa entrar, ele a deixa entrar, eles se amam, sua língua está em sua boca, ela mete sua língua em sua boca, seus lábios estão colados contra seus lábios, ela acaricia sua língua contra sua língua que gira em sua boca contra sua língua, acaricia sua língua contra sua língua quente e oferecida, ele mete sua língua em sua boca, e eles se amam, eles se beijam.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Umbrellas


Love love love
Umbrellas na janela
Umbrellas nos braços dela
Umbrellas amarelas.

Boi


Gosta do trampolim,
mas não para o mergulho.
Oi
     oI
oi

bem vai o BOI.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Memorial: segundo movimento

Warwick Goble

Perto da água sou mais feliz.
Os poetas me entortam.
Tendências a espirros em séries de sete.
Mais talvez, do que um sim ou um não.
Entre acordar cedo e o mau humor, cuidado, a distância é pequena.
Guarda-chuvas são obsessões ainda comportadas.
Minhas mãos são de gelo, meu coração de sopa.
Pouco talento para mentira - inversa vocação para as lágrimas.
Acho uma rima incrível rodar e amar.
ON para as amigas.
As nuvens me interessam.
Tenho um redemoinho de estimação.
Um dia vou para um canto do mato.
A carne por dentro é fiel até o osso.
Já amei errado. Pior, já paguei a conta do vizinho.
Creio que frutas são modificações do infinito.
Meio dragão meio peixe.
Despreparada para a objetividade.
Cafuné na barba como hits.
A lua me dá barato.
Minha vista anda amarrada em uma rosa branca.

Sim para os bondes, para a democracia e para a preguiça.