domingo, 20 de novembro de 2011

Quatro corvos

AQUELE MOMENTO

Quando ergueram o focinho da pistola
Fumegando azul
Como se ergue um cigarro do cinzeiro
E a única face restante no mundo
Jazia rompida
Entre mãos que relaxavam, sendo tarde demais
E as árvores se fecharam para sempre
E as ruas se fecharam para sempre
E o corpo jazia sobre o entulho
Do mundo abandonado
Junto dos utensílios abandonados
Expostos para sempre à infinitude
Corvo teve que ir atrás de algo para comer.

LINHAGEM
No princípio era o Grito
Que gerou o Sangue
Que gerou o Olho
Que gerou o Medo
Que gerou a Asa
Que gerou o Osso
Que gerou o Granito
Que gerou a Violeta
Que gerou a Guitarra
Que gerou o Suor
Que gerou Adão
Que gerou Maria
Que gerou Deus
Que gerou o Nada
Que gerou o Nunca
Nunca Nunca Nunca
Que gerou Corvo
Gritando por Sangue
Larvas, migalhas
Qualquer coisa
Implumes cotovelos tremendo
na imundície do ninho.

SANGUEZINHO
Ô sanguezinho, nas montanhas se escondendo das montanhas
Machucado por estrelas e pingando sombra
Comendo a terra medicinal.
Ô sanguezinho, desossadinho esfoladinho
Arando com a carcaça de um pintarroxo.
Ceifando o vento e debulhando as pedras.
Ô sanguezinho, batucando numa caveira de vaca
Dançando com as patas de um mosquito
Com uma tromba de elefante com uma cauda de crocodilo.
Ficou tão sabido ficou tão terrível
Sugando as tetas mofadas da morte.
Pousa no meu dedo, canta no meu ouvido, ô sanguezinho.

TESTE JUNTO AO PORTÃO DO VENTRE
De quem são esses pezinhos ossudos? Da morte.
De quem é essa cara arrepiada e chamuscada? Da morte.
De quem são esses pulmões ofegantes? Da morte.
De quem é esse macacão de músculos? Da morte.
De quem são essas vísceras indizíveis? Da morte.
De quem é essa discutível cachola? Da morte.
E todo esse sangue enxovalhado? Da morte.
E esses olhos de eficácia mínima? Da morte.
E essa linguinha maldosa? Da morte.
E essa vigília ocasional? Da morte.
Doado, roubado ou detido à espera de julgamento?
Detido.
De quem é a terra inteira chuvosa e pedregosa? Da morte.
De quem é o espaço inteiro? Da morte.
Quem é mais forte que a esperança? A morte.
Quem é mais forte que a vontade? A morte.
E mais forte que o amor? A morte.
E mais forte que a vida? A morte.
Mas quem é mais forte que a morte?
Eu, evidente.
Pode passar, Corvo.

Ted Hughes
Tradução Sérgio Alacides

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