domingo, 24 de abril de 2011

Caçador de raízes

Josef Hoflerhner

Eu pertenço à fecundidade
e crescerei enquanto crescem as vidas:
sou jovem com a juventude da água,
sou lento com a lentidão do tempo,
sou puro com a pureza do ar,
escuro com o vinho da noite
e só estarei imóvel quando seja
tão mineral que não veja nem escute,
nem participe do que nasce e cresce.

Quando escolhi a selva
para aprender a ser,
folha por folha,
estendi as minhas lições
e aprendi a ser raiz, barro profundo,
terra calada, noite cristalina,
e pouco a pouco mais, toda a selva.


Pablo Neruda

sábado, 23 de abril de 2011

Nestas circunstâncias o beija-flor vem sempre aos milhares


















Este é o quarto 
Augusto. 
Avisou que vinha. 
Lavei os sovacos e os pezinhos. 
Preparei o chá.
Caso ele me cheirasse... 
Ai que enjôo me dá o açúcar do desejo.

Ana Cristina Cesar






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terça-feira, 19 de abril de 2011

Recentemente

Recentemente, entre a poeira de algumas campanhas políticas, tomou de novo relevo aquele grosseiro hábito de polemista que consiste em levar a mal a uma criatura que ela mude de partido, uma ou mais vezes, ou que se contradiga, frequentemente. A gente inferior que usa opiniões continua a empregar esse argumento como se ele fosse depreciativo. talvez não seja tarde para estabelecer, sobre tão delicado assunto do trato intelectual, a verdadeira atitude científica.
Se há facto estranho e inexplicável é que uma criatura de inteligência e sensibilidade se mantenha sempre sentada sobre a mesma opinião, sempre coerente consigo própria. A contínua transformação de tudo dá-se também no nosso corpo, e dá-se no nosso cérebro consequentemente. Como então, senão por doença, cair e reincidir na anormalidade de querer pensar hoje a mesma coisa que se pensou ontem, quando só o cérebro de hoje já não é o de ontem, mas nem sequer o dia de hoje é o de ontem? Ser coerente é uma doença, um atavismo, talvez; data de antepassados animais em cujo estádio de evolução tal desgraça seria natural.
A coerência , a convicção, a certeza são, além disso, demonstrações evidentes - quantas vezes escusadas - de falta de educação. è uma falta de cortesia com os outros ser sempre o mesmo à vista deles; é macá-los, apoquentá-los com a nossa falta de variedade.
Uma criatura de nervos modernos de inteligência sem cortinas, de sensibilidade acordada, tem a obrigação cerebral de mudar de opinião e de certeza várias vezes no mesmo dia. Deve ter, não crenças religiosas, opiniões políticas, predilecções literárias, mas sensações religiosas, impressões políticas, impulsos de admiração literária.
Certos estados de alma da luz, certas atitudes da paisagem têm sobretudo, quando excessivos, o direito de exigir a quem está diante deles determinadas opiniões políticas, religiosas e artísticas, aqueles que eles insinuem, e que variãrão, como é de entender, consonte esse exterior varie. O homem disciplinado e culto faz da sua sensibilidade e da sua inteligência espelhos do ambiente transitório: é republicano de manhã, é monarquico ao crepúsculo; ateu sob um sol descoberto, e católico ultramontano a certas horas de sombra e de silêncio; e não podendo admitir senão Mallarmé àqueles momentos de anoitecer citadino em que desabrocham as luzes, ele deve sentir todo o simbolismo, uma invenção de louco quando, ante uma solidão do mar, ele não souber de mais do que da “Odisseia”.
Convições profundas, só as têm as criaturas superficiais. Os que não reparam para as coisas quase que as vêem apenas para não esbarrar com elas, esses são sempre da mesma opinião, são os íntegros e os coerentes. A política e a religião gastam dessa lenha, e é por isso que ardem tão mal ante a Verdade e a Vida.
Quando é que despertaremos para a justa noção de que a política, a religião e vida social são apenas graus inferiores e plebeus da estética - a estética dos que ainda não a podem ter? Só quando uma humanidade livre dos preconceitos de sinceridade e coerência tiver acostumada às suas sensações a viverem independentemente, se poderá conseguir qualquer coisa de beleza, elegância e serenidade na vida.

Fernando Pessoa, em Ideias políticas

domingo, 17 de abril de 2011


Viver é pertencer a outrem. Morrer é pertencer a outrem. Viver e morrer são a mesma coisa, mas viver é pertencer a outrem de fora e morrer é pertencer a outrem de dentro. As duas coisas assemelham-se mas a vida é o lado de fora da morte. Por isso a vida é a vida e a morte a morte, pois o lado de fora é sempre mais verdadeiro que o lado de dentro, tanto que é o lado de fora que se vê. Toda emoção verdadeira é mentira na inteligência pois não se dá nela. Toda emoção verdadeira tem portanto uma expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que não se sente. Os cavalos da cavalaria é que formam a cavalaria. Sem as montadas, os cavaleiros seriam peões. O lugar é que faz a localidade. Estar é ser. Fingir é conhecer-se.

Fernando Pessoa

Leveza



Leve é o pássaro:
e a sua sombra voante,
mais leve.

E a cascata aérea
de sua garganta,
mais leve.

E o que lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto,
mais leve.

E o desejo rápido
desse antigo instante,
mais leve.

E a fuga invisível
do amargo passante,
mais leve.    

Cecília Meireles

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Guardar


Guardar uma coisa não é escondê-la 
ou trancá-la. 
Em cofre não se guarda coisa alguma 
Em cofre perde-se a coisa à vista 
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, 
mirá-la por admirá-la, isto é, 
iluminá-la ou ser por ela iluminado 
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, 
fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, 
isto é, estar acordando por ela, isto é, 
estar por ela ou ser por ela.


Antônio Cícero

quarta-feira, 13 de abril de 2011

A flor do medo


A vida respeitosa lhe apresenta a flor do medo...
E vamos combinar,
o banco da escola é um dos melhores lugares para se ganhar boas sementes.
Depois canta e recita, o primeiro amor ferido, que é preciso fechar a janela.
E aprendemos a deixar nossas armas bem ao alcance da palavra.
Assim, vamos fazendo os furos e os remendos que são possíveis,
tementes ao trabalho definitivo de deus.
E desde quando medo tem dia?
Sua carreira não é breve.
Se te dizem, Vamos?
Ele aconselha: o ser humano é uma coisa.
Não vem que não tem, seu passo me pertence.
Sobre o cumprimento das lições do medo e outros ensaios,
a atitude é tudo.
Uma competição que celebra caminhos estreitos 
e afetos de aço.
Sua dose diária de desatenção.
Sugere-se, então, que entre os intervalos de seu show,
não se enfrente um espelho
as paisagens de tua infância estarão borradas.
Como dado essencial da despedida cotidiana,
o acordo é: não revele o segredo do cadeado de suas emoções
Tudo deve permanecer liso e engomado.
Hoje acordei e percebi que chegou uma nova estação
Olhei meu jardim e me espantei...
Estavam lá,
flores do medo crescendo entre as papoulas e violetas.


terça-feira, 12 de abril de 2011

Retrato



Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazio,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Cecília Meireles


segunda-feira, 11 de abril de 2011

Eu quero é teu calor animal

Mas onde já se ouviu falar num amor á distância,
Num teleamor ?!
Num amor de longe…
Eu sonho é um amor pertinho…
...E depois
Esse calor humano é uma coisa que todos - até os executivos têm
É algo que acaba se perdendo no ar
No vento
No frio que agora faz…
Escuta!
O que eu quero
O que eu amo
O que eu desejo em ti
È teu calor animal…

Mário Quintana

Um pálido Inverno

Um pálido inverno escorria nos quartos
Brancos de silêncio com a névoa
Um frio azul brilhava no vidro das janelas
As coisas povoavam os meus dias
Secretas graves nomeadas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 10 de abril de 2011

Com você

Se for com sol, eu topo
uma tarde curtindo a tarde
deitados na grama do parque
e vinho, e queijo, e beijo.

Se for com lua, eu topo
uma dose de desejo no copo
um cheiro de noite no corpo
e lençol, e pele, e suor.

Se for com você, eu topo
uma casinha azul no campo
um vaso de gérbera no canto
e rede, e quintal, e dengo.

Bertold Brecht

sábado, 9 de abril de 2011

Tu Queres Sono: Despe-te dos Ruídos

Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono
 
Ana Cristina Cesar

sexta-feira, 8 de abril de 2011


tracy emin



Há vários modos de matar um homem:
com o tiro, a fome, a espada
ou com a palavra
– envenenada.
.
Não é preciso força.
Basta que a boca solte
a frase engatilhada
e o outro morre
– na sintaxe da emboscada.


Affonso Romano De Sant'anna

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Lei


O que é preciso é entender a solidão!
O que é preciso é aceitar, mesmo, a onda amarga
que leva os mortos.

O que é preciso é esperar pela estrela
que ainda não está completa.

O que é preciso é que os olhos sejam cristal sem névoa,
e os lábios de ouro puro.

O que é preciso é que a alma vá e venha;
e ouça a notícia do tempo,
e. entre os assombros da vida e da morte,
estenda suas diáfanas asas,
isenta por igual.
de desejo e de desespero.

Cecília Meireles, in 'Poemas (1954)'

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Lição de filho

Recebi uma lição de um de meus filhos, antes dele fazer 14 anos. Haviam me telefonado avisando que uma moça que eu conheci ia tocar na televisão, transmitido pelo Ministério da Educação. Liguei a televisão mas em grande dúvida.
Eu conhecera essa moça pessoalmente e ela era excessivamente suave, com voz de criança, e de um feminino-infantil. E eu me perguntava: terá ela força no piano? Eu a conhecera num momento muito importante: quando ela ia escolher a "camisola do dia" para o casamento. As perguntas que me fazia eram de uma franqueza ingênua que me surpreendia. Tocaria ela piano?
Começou. E, Deus, ela possuía a força. Seu rosto era um outro, irreconhecível. Nos momentos de violência apertava violentamente os lábios. Nos instantes de doçura entreabria a boca, dando-se inteira. E suava, da testa escorria para o rosto o suor. De surpresa de descobrir uma alma insuspeita, fiquei com os olhos cheios de água, na verdade eu chorava. Percebi que meu filho, quase uma criança, notara, expliquei: estou emocionada, vou tomar um calmante. E ele:
-Você não sabe diferenciar emoção de nervosismo? Você está tendo uma emoção.
Entendi, aceitei, e disse-lhe:
-Não vou tomar nenhum calmante.
E vivi o que era para ser vivido.


Clarice Lispector em Jornal do Brasil, 1968