quarta-feira, 31 de março de 2010

Luiz Humberto
No rol da vida,
Camisas, Vestidos, Toalhas de mesa, Lençóis.
Suor do trabalho,
perfume da festa,
nódoas do cotidiano,
manchas da noite.
Sabão. Escova.
Esfregar, esfregar.
Clarear.
Torcer, torcer.
Estender.
Secar.
Leves velas abertas ao vento.

Maria




sexta-feira, 26 de março de 2010

quinta-feira, 25 de março de 2010

Se

se
nem
for
terra

se
trans
for
mar

Paulo Leminski


Olha Maria
Eu bem te queria
Fazer uma presa
Da minha poesia
Mas hoje, Maria
Pra minha surpresa
Pra minha tristeza
Precisas partir

Parte, Maria
Que estás tão bonita
Que estás tão aflita
Pra me abandonar
Sinto, Maria
Que estás de visita
Teu corpo se agita
Querendo dançar

Parte, Maria
Que estás toda nua
Que a lua te chama
Que estás tão mulher
Arde, Maria
Na chama da lua
Maria cigana
Maria maré

Parte cantando
Maria fugindo
Contra a ventania
Brincando, dormindo
Num colo de serra
Num campo vazio
Num leito de rio
Nos braços do mar

Vai, alegria
Que a vida, Maria
Não passa de um dia
Não vou te prender
Corre, Maria
Que a vida não espera
É uma primavera
Não podes perder

Anda, Maria
Pois eu só teria
A minha agonia
Pra te oferecer

Vinícius, Tom e Chico

terça-feira, 23 de março de 2010

Yevgeny Khaldei
Quien me iba a decir que el destino era esto.

Ver la lluvia a través de letras invertidas,
un paredón con manchas que parecen prohombres,
el techo de los ómnibus brillantes como peces
y esa melancolia que impregna las bocinas.

Aqui no hay cielo,
aqui no hay horizonte.

Hay una mesa grande para todos los brazos
y una silla que gira cuando quiero escaparme.
Otro dia se acaba y el destino era esto.

Es raro que uno tenga tiempo de verse triste:
siempre suena una orden, un teléfono, un timbre,
y, claro, esta prohibido llorar sobre los libros
porque no queda bien que la tinta se corra.

M. Benedetti


segunda-feira, 22 de março de 2010

Canto Esponjoso

Bela
esta manhã sem carência de mito,
e mel sorvido sem blasfémia.

Bela
esta manhã ou outra possível,
esta vida ou outra invenção,
sem, na sombra, fantasmas.

Umidade de areia adere ao pé.
engulo o mar, que me engole.
Valvas, curvos pensamentos, matizes da luz
azul
completa
sobre formas constituídas.

Bela,
a passagem do corpo, sua fusão
no corpo geral do mundo.
Vontade de cantar. Mas tão absoluta
que me calo, repleto.

Carlos Drummond de Andrade

Sonho domado

Sei que é preciso sonhar.

Campo sem orvalho, seca
A frente de quem não sonha.

Quem não sonha o azul do vôo
perde seu poder de pássaro.

A realidade da relva
cresce em sonho no sereno
para não ser relva apenas,
mas a relva que se sonha.

Não vinga o sonho da folha
se não crescer incrustado
no sonho que se fez árvore.

Sonhar, mas sem deixar nunca
que o sol do sonho se arraste
pelas campinas do vento.

É sonhar, mas cavalgando
o sonho e inventando o chão
para o sonho florescer.

Thiago de Mello
Visto da terra, o céu é azul.
Vista do céu, a terra é azul.
Será o azul uma cor em si
Ou uma questão de distância?
Ou uma questão de nostalgia?
O inatingível é sempre azul.

Clarice Lispector

domingo, 21 de março de 2010

A lua tem se minguado em um trabalho diário de concentração
Preste atenção cientista,
as páginas ainda estão em branco.
Mas a poeta prefere ir à praia.
Na toca do gato, tempero novo de minhas articulações.

O poeta pede ao seu amor que lhe escreva

Amor de minhas entranhas, morte viva,
em vão espero tua palavra escrita... Ver mais
e penso, com a flor que se murcha,
que se vivo sem mim quero perder-te.

O ar é imortal. A pedra inerte
nem conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
o mel gelado que a lua verte.

Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias,
tigre e pomba, sobre tua cintura
em duelo de kordiscos e açucenas.

Enche, pois, de palavras minha loucura
ou deixa-me viver em minha serena
noite da alma para sempre escura.

Federico Garcia Lorca

quinta-feira, 18 de março de 2010

quarta-feira, 17 de março de 2010

Mão de Criança

Tudo o que me leva o livro
cabe na palma da mão
de uma criança: o lugar
de onde erguem os pássaros
da inocência, em cujo canto
vai a liberdade da vida.

Thiago de Mello

Pirata

Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 12 de março de 2010

Música

Noite perdida,
não te lamento:... Ver mais
embarco a vida

no pensamento,
busco a alvorada
do sonho isento,

puro e sem nada,
- rosa encarnada,
intacta, ao vento.

Noite perdida,
noite encontrada,
morta, vivida,

e ressuscitada...
(Asa da lua
quase parada,

mostra-me a sua
sombra escondida,
que continua

a minha vida
num chão profundo!
- raiz prendida

a um outro mundo.)
Rosa encarnada
do sonho isento,

muda alvorada
que o pensamento
deixa confiada

ao tempo lento...
Minha partida,
minha chegada,

é tudo vento...

Ai da alvorada!
Noite perdida,
noite encontrada..

Cecília Meireles

quinta-feira, 11 de março de 2010

Inspira-me Buñuel


Recuse a bacia e a água
que mudará todo o curso da história
É a imagem do mundo inventada na lente do descrente
Universo e Terra continuará perfeitamente sem nós
Entre os segredos do nada e do impensável
crer e não crer, a mesma coisa será
o vazio do desinventamento
o universo sem seus mistérios.
Mas nasci
escolhi meu lugar.
o pão, na cidade de ouro colhido
o ar, no secreto da vida
Em algum lugar insinua-se a imaginação dos homens.
Nosso primeiro privilégio diante do infinito.

terça-feira, 9 de março de 2010

Sorvete

Se você não me dá,
caminho entre os desatinos de uma madrugada onde não há surpresas
escondo meu grito entre os goles de uma bebida que nada me doa
ou muito pouco para esta alma de infinito
todos os versos vão embrulhados para que você não me alcançe
aquele que se esconde entre a vaidade e o fim dos tempos
ser mulher é ser entre o descompasso e a reunião
mesmo assim amanhã o despertador há de tocar
e tudo será como uma bruma azeda
esquisita e de propósitos mudos
quem te ensinou ser tão covarde?
quem me ensinou a ter este coração tempestade?
vou caminhar,
vou dormir muitas horas,
vou beber muita água.
estes são propósitos daqueles que não esquecem de existir,
mesmo com a batida contínua do relógio.
vou morrer pra você agora.
fechar meus olhos de esmeralda
em amarelo ouro guardado no quarto de minha sobrinha.
amanhã ela não estará mais aqui,
ninguém há de notar sua perpétua ausência
eu mesma não ei de chorar
sua existência pequena.
seu acordo com mundo não valerá um tostão
Já a outra, se foi?
pergunte aos poetas
aqueles que fazem abrir todos os dias a porta
mesmo se a vontade é de desperança,
ou de comunhão com os homens
que constróem as casas.
viver renhido
encanta
e te nego meus versos
melados de tonterias.
O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade… sei lá de quê!

Florbela Espanca

segunda-feira, 8 de março de 2010

A mulher de Peixe

Mulher de Peixe... peixe é
Em águas paradas não dá pé
Porque desliza como a enguia
Sempre que entra numa fria.
Na superfície é sinhazinha
E festiva como a sardinha
Mas quando fisga um namorado
Ele está frito, escabechado.
É uma mulher tão envolvente
Que na questão do Paraíso
Há quem suspeite seriamente
Que ela era a mulher e a serpente.
Seu Id: aparenta juízo
Seu Ego: a omissão, o orgulho
Sua pedra astral: a ametista
Seu bem: nunca ser bagulho
Sua cor: o amarelo brilhante
Seu fim: dar sempre na vista

Vinícius de Moraes

domingo, 7 de março de 2010

A forma justa

Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu, o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos – se ninguém atraiçoasse – proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino -
Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Cântico II

Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens...... Ver mais
não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabes que serás assim para sempre.
Não queiras marcar a tua passagem.
Ela prossegue:
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade.
És tu

Cecília Meireles
O que há de errado comigo?
tem um buraco colorido no peito
leminskiando.

sábado, 6 de março de 2010

A voz

Meu berço ao pé da biblioteca se estendia,
Babel onde a ficção e ciência, tudo, o espolio
Da cinza negra ao pó do Lácio se fundia.
Eu tinha ali a mesma altura de um in-fólio.
Duas vozes ouvi. Uma, insidiosa, a mim
Dizia: "A Terra é um bolo apetitoso à goela;
Eu posso (e teu prazer seria então sem fim!)
Dar-te uma gula tão imensa quanto a dela."
A outra: "Vem! Vem viajar nos sonhos que semeias,
Além da realidade e do que além é infindo!"
E essa cantava como o vento nas areias,
Fantasma não se sabe ao certo de onde vindo,
Que o ouvido ao mesmo tempo atemoriza e afaga.
Eu te respondi: "Sim, doce voz!" É de então
Que data o que afinal se diz ser minha chaga,
Minha fatalidade. E por trás de telão
Dessa existência imensa, e no mais negro abismo,
Distintamente eu vejo os mundos singulares,
E, vítima do lúcido êxtase em que cismo,
Arrasto répteis a morder-me os calcanhares.
E assim como um profeta é que, desde esse dia,
Amo o deserto e a solidão do mar largo;
Que sorrio no luto e choro na alegria,
E apraz-me como suave o vinho mais amargo;
Que os fatos mais sombrios tomo por risonhos,
E que, de olhos no céu, tropeço e avanço aos poucos.
Mas a voz consola e diz: "Guarda teus sonhos:
Os sábios não os têm tão belos quanto os loucos!"

Baudelaire

sexta-feira, 5 de março de 2010

Casablaca

Te acalma, minha loucura!
Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados!
Este som de serra de afiar as facas... Ver mais
não chegará nem perto do teu canteiro de taquicardias...
Estas molas a gemer no quarto ao lado
Roberto Carlos a gemer nas curvas da Bahia
O cheiro inebriante dos cabelos na fila em frente no cinema...
As chaminés espumam pros meus olhos
As hélices do adeus despertam pros meus olhos
Os tamancos e os sinos me acordam depressa na madrugada feita de binóculos de gávea
e chuveirinhos de bidê que escuto rígida nos lençóis de pano

AC Cesar

Caju

Insidiosa carne
Não quero mais o fingimento de ser pingo de chuva fresca no rosto
Cruzei a esquina apenas com o amor natural emprestado
O resto virou conto de pescaria.
Ninguém sabe se viu,
se era assombração
ou devaneio de poeta.
Agora eu quero é cheiro de caju na boca.

O Poeta Futuro

O poeta futuro já se encontra no meio de vós,
Ele nasceu da terra
Preparada por gerações de sensuais e de místicos:
Surgiu do universo em crise, do massacre entre irmãos,
Encerrando no espírito épocas superpostas.... Ver mais... Ver mais
O homem sereno, a síntese de todas as raças, o portador da vida
Sai de tanta luta e negação, e do sangue espremido.
O poeta futuro já vive no meio de vós
E não o pressentis.
Ele manifesta o equilíbrio de múltiplas direções
E não permitirá que logo se perca,
Não acabará de apagar o pavio que ainda fumega,
Transformando o aço da sua espada
Em penas que escreverão poemas consoladores.
O poeta futuro apontará o inferno
Aos geradores de guerra,
Aos que asfixiam órfãos e operários.

Murilo Mendes

quinta-feira, 4 de março de 2010

Somos Todos Poetas

Assisto em mim a um desdobrar de planos.
as mãos vêem, os olhos ouvem, o cérebro se move,
A luz desce das origens através dos tempos
E caminha desde já
Na frente dos meus sucessores.
Companheiro,
Eu sou tu, sou membro do teu corpo e adubo da tua alma.
Sou todos e sou um,
Sou responsável pela lepra do leproso e pela órbita vazia do cego,
Pelos gritos isolados que não entraram no coro.
Sou responsável pelas auroras que não se levantam
E pela angústia que cresce dia a dia.

Murilo Mendes

quarta-feira, 3 de março de 2010


Por dentro estou em órbita
e tenho sabor de mania de mundo
Agradeço ser homem nos aproximados 408 ciclos lunares de descompassos de minha cabeça
Plano de vôo para as próximas luas é violeta
Acompanhar os versos daqueles que tem boca de feitiço
as crianças, com suas invencionices de encantamento
os bandidos, e seus desajustes da cor
as mães, nas suas querências desmedidas.
Caminhar à linha dágua sugere um pouco mais de alegrias melancólicas.
O azul me descortina para o dia.
Durmo na beira da cor.
Vejo um ovo de anu atrás do outono.
...........................................................
(eu tenho amanhecimentos precoces?)
............................................................
Cresce destroço em minhas aparências.
Nesse destroço finco uma açucena.
(É um cágado que empurra estas distâncias?)
A chuva se engalana em arcoiris.
Não sei mais calcular a cor das horas.
As coisas me ampliaram para menos.

Manoel de Barros – O livro das ignorãças

segunda-feira, 1 de março de 2010

Depois do Carnaval

Terminado o Carnaval, eis que nos encontramos com os seus melancólicos despojos: pelas ruas desertas, os pavilhões, arquibancadas e passarelas são uns tristes esqueletos de madeira; oscilam no ar farrapos de ornamentos sem sentido, magros, amarelos e encarnados, batidos pelo vento, enrodilhados em suas cordas; torres coloridas, como desmesurados brinquedos, sustentam-se de pé, intrusas, anômalas, entre as árvores e os postes. Acabou-se o artifício, desmanchou-se a mágica, volta-se à realidade.

À chamada realidade. Pois, por detrás disto que aparentamos ser, leva cada um de nós a preocupação de um desejo oculto, de uma vocação ou de um capricho que apenas o Carnaval permite que se manifestem com toda a sua força, por um ano inteiro contida.

Somos um povo muito variado e mesmo contraditório: o que para alguns parecerá defeito é, para outros, encanto. Quem diria que tantas pessoas bem comportadas, e aparentemente elegantes e finas, alimentam, durante trezentos dias do ano, o modesto sonho de serem ursos, macacos, onças, gatos e outros bichos? Quem diria que há tantas vocações para índios e escravas gregas, neste país de letrados e de liberdade?

Por outro lado, neste chamado país subdesenvolvido, quem poderia imaginar que há tantos reis e imperadores, princesas das Mil e Uma Noites, soberanos fantásticos, banhados em esplendores que, se não são propriamente das minas de Golconda, resultam, afinal, mais caros: pois se as gemas verdadeiras têm valor por toda a vida, estas, de preço não desprezível, se destinam a durar somente algumas horas.

Neste país tão avançado e liberal — segundo dizem — há milhares de corações imperiais, milhares de sonhos profundamente comprimidos mas que explodem, no Carnaval, com suas anquinhas e casacas, cartolas e coroas, mantos roçagantes (espanejemos o adjetivo), cetros, luvas e outros acessórios.

Aliás, em matéria de reinados, vamos do Rei do Chumbo ao da Voz, passando pelo dos Cabritos e dos Parafusos: como se pode ver no catálogo telefônico. Temos impérios vários, príncipes, imperatrizes, princesas, em etiquetas de roupa e em rótulos de bebidas. É o nosso sonho de grandeza, a nossa compensação, a valorização que damos aos nossos próprios méritos...

Mas, agora que o Carnaval passou, que vamos fazer de tantos quilos de miçangas, de tantos olhos faraônicos, de tantas coroas superpostas, de tantas plumas, leques, sombrinhas...?

"Ved de quán poco valor
Son las cosas tras que andamos
Y corremos..."

dizia Jorge Manrique. E no século XV! E falando de coisas de verdade! Mas os homens gostam da ilusão. E já vão preparar o próximo Carnaval...

Cecília Meireles

Texto extraído do livro "Quatro Vozes", Editora Record - Rio de Janeiro, 1998, pág. 93.