segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Nathalie Daoust
Antes de acordar ela fez alguns barulhos desconhecidos, mesmo após tantas noites compartilhadas. Chamou-me atenção, o que acontece com essa mulher? Ao despertar, lança um olhar tênue que pouco condiz aos olhos mansos de todas as manhãs. Levanta-se lenta, muda, triste. Aproxima-se de nossa janela ampla e verde e, finalmente, faz o primeiro gesto familiar. Sem vertigem senta sobre o parapeito, encolhe as pernas e esconde os pés sobre a camisola longa de algodão. Magnífico reconhecer, Maria. Maria que tem ventas e frio nos pés. Aproximei-me e a abracei. Ela permaneceu estática e apenas me disse que teve um sonho ruim. A partir daquele momento reconheceria Maria em todos os gestos e palavras. Seus suspiros e pausas curtas. Seus olhos oscilantes de concentração de coruja. Sua sede.
Contou-me do casamento no fundo do mar. Das prendas sempre em número ímpar resgatadas das víceras de peixes. Do véu da noiva cosido de pele de bicho marinho não identificado. Talvez água-viva, quem sabe tentáculos de anêmona.
Quando havia tempo fazia parte do nosso acordo matutino a história de seus sonhos e isso já enchia os primeiros minutos do meu dia de bichos esquisitos: peixes encantados, ovelhas prenhas, mulheres pássaros, mergulhos profundos, dores de coração. Mulher estranha, mas como era bom começar o dia assim. Em mim ela era meus sonhos de cachoeira.
Soprava em meus olhos e me dizia que a vida era delírio, vivíamos em desatino e um dia talvez não nos reconheceríamos no meio da escadaria. Sentiria saudades. Então, me beijava a boca de um jeito tão delicioso e carnudo, que éramos sempre fogo e nunca cinza.
Dizia-me que acordar era como morrer e que sempre era mais feliz no sono. Quantas vezes me disse Maria isso? Quantas vezes escutei seus sonhos? Velhos tons.
Visão compartilhada, calou-se. Virou-se para a vista da janela e imediatamente éramos um casal normal. Hora de trabalhar. O outro que se levanta e vai ainda arrastando os pés ao banheiro. A face no espelho, a água que escorre na pia e no chuveiro.
Mas Maria permaneceu ali pousada e eu sabia, sempre sabia: estava chorando. Disse-me que em seu sonho morava em uma casa antiga onde no porão se guardavam peixes. Cabia a ela zelar pelo faqueiro de prata da velha da casa, exposto em uma espécie de cristaleira de meio metro de altura. Por que chorava? Não importa, sempre chorava. Disse-me que ali no porão se sentia mal: ou pouco amada ou pouco entendida ou pouco fingida ou com dores no corpo.
Ultimamente, acometia-lhe dores no pescoço que causavam uma ligeira sensação de sufocamento. Dizia que lhe tiravam a exata percepção das coisas, seus juízos estavam deslocados nove centímetros.
Aquela era Maria. Maria que só eu conhecia. Como, apesar e em pesar, eu a amava em seus delírios. Maria a mais correta, a mais certinha, era a mulher do fim do mundo. A que jamais beberia das feridas do homem na cruz.
Lambi suas lágrimas, pois sabia que isso lhe agradava e sorrimos juntos. Ela passou seus dedos em meus cabelos - adorava sentir meus pelos sobre sua tez – e deu um saltinho da janela com a roda dos seus braços no meu pescoço e as pontas de seus pés sobre os meus. Tudo totalmente, Maria.

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