quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Matéria da Poesia


Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia

O homem que possui um pente
 e uma árvore
 serve para poesia

Terreno de 10x20, sujo de mato – os que
 nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia

Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia

As coisas que não levam a nada
 têm grande importância

Cada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimo tem seu lugar na poesia ou na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
 servem demais para poesia

As coisas que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
 e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
 serve para poesia

As coisas que os líquenes comem
- sapatos, adjetivos -
tem muita importância para os pulmões
da poesia

Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia

Os loucos de água e estandarte
servem demais.

O traste é ótimo.
O pobre – diabo é colosso

Tudo que explique
 o alicate cremoso
e o lodo das estrelas
serve demais da conta

Pessoas desimportantes
dão para poesia
 qualquer pessoa ou escada

Tudo que explique
a lagartixa de esteira
 e a laminação de sabiás
 é muito importante para a poesia

O que é bom para o lixo é bom para poesia

Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
sabe a destroços

As coisas jogadas fora
têm grande importância
 - como um homem jogado fora

Alías é também objeto de poesia
saber qual o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem nascerem
em sua boca as raízes da escória

As coisas sem importância são bens de poesia

Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
 ao poema, e as andorinhas de junho.

Manoel de Barros

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