terça-feira, 31 de agosto de 2010
O Mito
Sequer conheço fulana,
Vejo
fulana tão curto
Fulana
jamais me vê,
Mas
como amo fulana.
Amarei
mesmo fulana?
Ou
é ilusão de sexo?
Talvez
a linha do busto,
Da
perna, talvez o ombro.
Amo
fulana tão forte,
Amo
fulana tão dor,
Que
todo me despedaço
E
choro,menino, choro
Mas
fulana vai se rindo...
Vejam
fulana dançando
No
esporte ele está sozinha
No
bar, quão acompanhada.
E
fulana diz mistérios,
Diz
marxismo, rimmel, gás.
Fulana
me bombardeia,
No
entanto sequer me vê.
E
sequer nos compreendemos,
É
dama de alta fidúcia,
Tem
latifúndios, iates,
Sustenta
cinco mil pobres,
Menos
eu...que de orgulhoso
Me
basto pensando nela
Pensando
com unha, plasma,
Fúria,
gilete, desânimo.
Amor
tão disparatado,
Desbaratado
é que é...
Nunca
a sentei no meu colo
Nem
vi pela fechadura.
Mas
sei quanto me custa
Manter
esse gelo digno,
Essa
indiferença gaia, e não gritar:vem, fulana!
Como
deixar de invadir
Sua
casa de mil fechos
E
sua veste arrancando
Mostrá-la
depois ao povo
Tal
como deve ser:
Branca,
intata, neutra, rara,
Feita
de pedera translúcida,
De
ausência e ruivos ornatos.
Mas
como será fulana,
Digamos,
no seu banheiro?
Só
de pensar em seu corpo,
O
meu se punge...pois sim.
Porque
preciso do corpo
Para
mendigar fulana,
Rogar-lhe
que pise em mim,
Que
me maltrate...assim não.
Mas
fulana será gente?
Estará
somente em ópera?
Será
figura de livros?
Será
bicho? saberei?
Não
saberei? só pegando,
Pedindo:
dona, desculpe,
O
seu vestido, esconde algo?
Tem
coxas reais? cintura?
Fulana
às vêzes existe
Demais:
até me apavora.
Vou
sozinho pela rua,
Eis
que fulana me roça.
Mas
não quero nada disso.
Para
que chatear fulana?
Pancada
na sua nuca
Na
minha que vai doer.
E
daí não sou criança
Fulana
estudo meu rosto
Coitado:
de raça branca
Tadinho:
tinha gravata
Já
morto, me quererá?
Esconjuro,
se é necrófila...
Fulana
é vida, ama as flores,
As
artérias e as debêntures.
Sei
que jamais me perdoara
Matar-me
para servi-la.
Fulana
quer homens fortes
Couraçados,
invasores.
Fulana
é tão dinâmica
Tem
um motor na barriga.
Suas
unhas são elétricas,
Seus
beijos refrigerados,
Desinfetados,
gravados
Em
máquina multilite.
Fulana,
como é sadia!
Os
enfermos somos nós.
Sou
eu, o poeta precário
Que
fêz de fulana um mito
Nutrindo-me
de petrarca,
Ronsard,
camões e capim;
Que
a sei embebida em leite,
Carne,
tomate, ginástica
E
lhe colo metafísicas,
Enigmas,
causas primeiras.
Mas,
se tentasse construir
Outra
fulana que não
Essa
de burguês sorisso
E
de tão burro esplendor?
Mudo-lhe
o nome: recorto-lhe
Um
traje de transparência;
Já
perde a carência humana
E
bato-a; de tirar sangue.
E
lhe dou todas as faces
De
meu sonho que especula;
E
abolimos a cidade
Já
sem peso e nitidez.
E
vadeamos a ciência,
Mar
de hipóteses.a lua
Fica
sendo nosso esquema
De
um território mais justo.
E
colocamos os dados
De
um mundo sem classe e imposto;
E
nesse mundo instalamos
Os
nossos irmãos vingados:
E
nessa fase gloriosa,
De
contradições extintas,
Eu
e fulana, abrasados,
Queremos...que
mais queremos?
E
digo a fulana: amiga,
Afinal
nos compreendemos.
Já
não sofro, já não brilhas,
Mas
somos a mesma coisa
(
uma coisa tão diversa da que pensava que fossemos.)
Carlos
Drummond de Andrade, em Antologia Poética
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
Cidadezinha qualquer
Coração numeroso
Foi no Rio.
Eu passava na Avenida quase meia-noite.
Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.
Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.
Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.
O mar batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.
Carlos Drummond de Andrade, em Antologia Poética
Eu passava na Avenida quase meia-noite.
Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.
Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.
Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.
O mar batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.
Carlos Drummond de Andrade, em Antologia Poética
domingo, 29 de agosto de 2010
Perguntas
Numa incerta hora fria
perguntei ao fantasma
que força nos prendia,
ele a mim, que presumo
estar livre de tudo,
eu a ele, gasoso,
todavia palpável
na sombra que projeta
sobre meu ser inteiro:
um ao outro, cativos
desse mesmo princípio
ou desse mesmo enigma
que distrai ou concentra
e renova e matiza,
prolongando-a no espaço
uma angústia do tempo.
Perguntei-lhe em seguida
o segredo de nosso
convívio sem contato,
de estarmos ali quedos,
eu em face do espelho,
e o espelho devolvendo
uma diversa imagem,
mas sempre evocativa
do primeiro retrato
que compõe de si mesma
a alma predestinada
a um tipo de aventura
terrestre, cotidiana.
Perguntei-lhe depois
por que tanto insistia
nos mares mais exíguos
em distribuir navios
desse calado irreal,
sem rota ou pensamento
de atingir qualquer porto,
propícios a naufrágio
mais que à navegação;
nos frios alcantis
de meu serro natal,
desde muito derruído,
em acordar memórias
de vaqueiros e vozes,
magras reses, caminhos
onde a bosta de vaca
é o único ornamento,
e o coqueiro-de-espinho
desolado se alteia.
Perguntei-lhe por fim
a razão sem razão
de me inclinar aflito
sobre restos de restos,
de onde nenhum alento
vem refrescar a febre
desse repensamento:
sobre esse chão de ruínas
imóveis, militares
na sua rigidez
que o orvalho matutino
já não banha ou conforta.
No vôo que desfere,
silente e melancólico,
rumo da eternidade
ele apenas responde
(se acaso é responder
a mistérios, somar-lhes
um mistério mais alto):
Amar, depois de perder.
Carlos Drummond de Andrade, em Antologia Poética
perguntei ao fantasma
que força nos prendia,
ele a mim, que presumo
estar livre de tudo,
eu a ele, gasoso,
todavia palpável
na sombra que projeta
sobre meu ser inteiro:
um ao outro, cativos
desse mesmo princípio
ou desse mesmo enigma
que distrai ou concentra
e renova e matiza,
prolongando-a no espaço
uma angústia do tempo.
Perguntei-lhe em seguida
o segredo de nosso
convívio sem contato,
de estarmos ali quedos,
eu em face do espelho,
e o espelho devolvendo
uma diversa imagem,
mas sempre evocativa
do primeiro retrato
que compõe de si mesma
a alma predestinada
a um tipo de aventura
terrestre, cotidiana.
Perguntei-lhe depois
por que tanto insistia
nos mares mais exíguos
em distribuir navios
desse calado irreal,
sem rota ou pensamento
de atingir qualquer porto,
propícios a naufrágio
mais que à navegação;
nos frios alcantis
de meu serro natal,
desde muito derruído,
em acordar memórias
de vaqueiros e vozes,
magras reses, caminhos
onde a bosta de vaca
é o único ornamento,
e o coqueiro-de-espinho
desolado se alteia.
Perguntei-lhe por fim
a razão sem razão
de me inclinar aflito
sobre restos de restos,
de onde nenhum alento
vem refrescar a febre
desse repensamento:
sobre esse chão de ruínas
imóveis, militares
na sua rigidez
que o orvalho matutino
já não banha ou conforta.
No vôo que desfere,
silente e melancólico,
rumo da eternidade
ele apenas responde
(se acaso é responder
a mistérios, somar-lhes
um mistério mais alto):
Amar, depois de perder.
Carlos Drummond de Andrade, em Antologia Poética
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
Freireana n.I
Me perdi no mapa mundi
entre latitudes e logitudes de dúvidas.
Me assisti
ao me conceber inacabada.
Ser mais
é quase sempre um acidente trágico,
tantos não chegam a ser nesse riscado.
Eu me situo entre os vermes,
no ponto tão limitado da minha crença.
Saber que o que vejo é só o não ver
exige lealdade ao outro.
Um estado de alongamentos em direção ao diferente que é igual a mim.
Nós, não mais do que só o nosso cadáver.
entre latitudes e logitudes de dúvidas.
Me assisti
ao me conceber inacabada.
Ser mais
é quase sempre um acidente trágico,
tantos não chegam a ser nesse riscado.
Eu me situo entre os vermes,
no ponto tão limitado da minha crença.
Saber que o que vejo é só o não ver
exige lealdade ao outro.
Um estado de alongamentos em direção ao diferente que é igual a mim.
Nós, não mais do que só o nosso cadáver.
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
Cancelem todas as crianças,
os homens não querem mais amar.
Se o destino é a distinção,
por que insistir em algum projeto?
Vendamos terapia, anti-alérgicos e corações de silicone.
Existir é uma fraude,
entre pinguins, vamos beber original.
Em tempo,
ainda no ponto e vírgula,
visto a fantasia recomendada do baú de minha infâcia.
Não é o álcool, não é a festa, nem a madrugada borrada.
É o outro verso deste revés.
O poeta passarinhando.
Sabiando nas nuvens estaladas no cucuruco róseo do céu.
O bordador de vaga-lumes,
nas franjas de minhas desesperanças.
Confie brilho às fantasias.
Esteja sempre um poeta
confiado
e
fingidor.
Um forjador de lantejoulas.
os homens não querem mais amar.
Se o destino é a distinção,
por que insistir em algum projeto?
Vendamos terapia, anti-alérgicos e corações de silicone.
Existir é uma fraude,
entre pinguins, vamos beber original.
Em tempo,
ainda no ponto e vírgula,
visto a fantasia recomendada do baú de minha infâcia.
Não é o álcool, não é a festa, nem a madrugada borrada.
É o outro verso deste revés.
O poeta passarinhando.
Sabiando nas nuvens estaladas no cucuruco róseo do céu.
O bordador de vaga-lumes,
nas franjas de minhas desesperanças.
Confie brilho às fantasias.
Esteja sempre um poeta
confiado
e
fingidor.
Um forjador de lantejoulas.
terça-feira, 24 de agosto de 2010
Dona Doida
Uma vez, quando eu era
menina, choveu grosso
com
trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando
se pôde abrir as janelas,
as
poças tremiam com os últimos pingos.
Minha
mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu
inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui
buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta
anos depois. Não encontrei minha mãe.
A
mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com
sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus
filhos me repudiaram envergonhados,
meu
marido ficou triste até a morte,
eu
fiquei doida no encalço.
Só
melhoro quando chove.
Adélia
Prado
domingo, 22 de agosto de 2010
Historiador
Veio para ressuscitar o tempo
e escalpelar os mortos,
as condecorações, as liturgias, as espadas,
o espectro das fazendas submergidas,
o muro de pedra entre membros da família,
o ardido queixume das solteironas,
os negócios de trapaça, as ilusões jamais confirmadas
nem desfeitas.
Veio para contar
o que não faz jus a ser glorificado
e se deposita, grânulo,
no poço vazio da memória.
É importuno,
sabe-se importuno e insiste,
rancoroso, fiel.
Carlos Drummond de Andrade, em 'A Paixão Medida'
e escalpelar os mortos,
as condecorações, as liturgias, as espadas,
o espectro das fazendas submergidas,
o muro de pedra entre membros da família,
o ardido queixume das solteironas,
os negócios de trapaça, as ilusões jamais confirmadas
nem desfeitas.
Veio para contar
o que não faz jus a ser glorificado
e se deposita, grânulo,
no poço vazio da memória.
É importuno,
sabe-se importuno e insiste,
rancoroso, fiel.
Carlos Drummond de Andrade, em 'A Paixão Medida'
sábado, 21 de agosto de 2010
cantar,
luzir
no
lixo cinza do universo.
Eu
verterei o meu sol
e
você o seu
com
seus versos.
Se
o sol se cansa
e
a noite lenta
quer
ir pra cama,
marmota
sonolenta,
eu,
de repente,
inflamo
a minha flama
e
o dia fulge novamente.
Brilhar
para sempre,
brilhar
como um farol,
brilhar
com brilho eterno,
gente
é pra brilhar,
que
tudo mais vá pro inferno,
este
é o meu slogan
e
o do sol
V.
Maiakovski
- Vou me sentar em um lugar arejado.
- Por que? Vende pornô ai?
- Não sei. Quero um homem vira mundo.
- Esta história é uma farsa. Vá alimentar o gato.
- Aliás, o que há de errado comigo? Tenho um buraco no peito lemenskiando.
- Está tarde.
- Vou me deitar em uma cama verde.
- Eu sei. Está tarde.
- Desculpa, achei que era noite de lua cheia. Pensei em te contar alguns segredos.
- Amanhã.
- Por um triz prefiri a morte... Amanhã, então. Faço-te confissões e cafunés lentos se você me abrir a porta e se eu não esquecer de alimentar o gato. Vou dormir, então.
tum tum tum tum....
- Por que? Vende pornô ai?
- Não sei. Quero um homem vira mundo.
- Esta história é uma farsa. Vá alimentar o gato.
- Aliás, o que há de errado comigo? Tenho um buraco no peito lemenskiando.
- Está tarde.
- Vou me deitar em uma cama verde.
- Eu sei. Está tarde.
- Desculpa, achei que era noite de lua cheia. Pensei em te contar alguns segredos.
- Amanhã.
- Por um triz prefiri a morte... Amanhã, então. Faço-te confissões e cafunés lentos se você me abrir a porta e se eu não esquecer de alimentar o gato. Vou dormir, então.
tum tum tum tum....
sexta-feira, 20 de agosto de 2010
É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.
É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.
É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.
É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.
Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.
Carlos Drummond de Andrade
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.
É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.
É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.
É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.
Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.
Carlos Drummond de Andrade
quarta-feira, 18 de agosto de 2010
Margarida Enlata
I
Foi
de repente. Nesse de repente, ele ia indo pelo meio do aterro quando viu um
canteiro de margaridas. Margarida era um negócio comum: ele via sempre
margaridas quando ia para sua indústria, todas as manhãs. Margaridas não o
comoviam, porque não o comoviam levezas. Mas exatamente de repente, ele mandou
o chofer estacionar e ficou um pouco irritado com a confusão de carros às suas
costas. O motorista precisou parar um pouco adiante, e ele teve que caminhar um
bom pedaço de asfalto para chegar perto do canteiro. Estavam ali, independentes
dele ou de qualquer outra pessoa que gostasse ou não delas: aquelas coisas
vagamente redondas, de pétalas compridas e brancas agrupadas em torno dum
centro amarelo, granuloso. Margaridas. Apanhou uma e colocou-a no bolso do
paletó.
Diga-se
em seu favor que, até esse momento, não premeditara absolutamente nada. Levou a
margarida no bolso, esqueceu dela, subiu pelo elevador, cumprimentou as
secretárias, trancou-se em sua sala. Como todos os dias, tentou fazer todas as
coisas que todos os dias fazia. Não conseguiu. Tomou café, acendeu dois
cigarros, esqueceu um no cinzeiro do lado direito, outro no cinzeiro do lado
esquerdo, acendeu um terceiro, despediu três funcionários e passou uma
descompostura na secretária. Foi só ao meio-dia que lembrou da margarida, no
bolso do paletó. Estava meio informe e desfolhada, mas era ainda uma margarida.
Sem saber exatamente por que, ficou pensando em algumas notícias que havia lido
dias antes: o índice de suicídios nos países superdesenvolvidos, o asfalto
invadindo as áreas verdes, a solidão, a dor, a poluição, a loucura e aquelas coisas
sujas, perigosas e coloridas a que chamavam jovens. De repente, a luz. Brotou.
Deu um grito:
—É
isso!
Chamou
imediatamente um dos redatores para bolar um slogan e esqueceu de almoçar e
telefonou para suas plantações e mandou que preparassem a terra para novo
plantio e ordenou a um de seus braços-direitos que comprasse todos os pacotes
de sementes encontráveis no mercado depois achou melhor importá-las dos mais
variados tamanhos cores e feitios depois voltou atrás e achou melhor
especializar-se justamente na mais banal de todas aquela vagamente redonda de
pétalas brancas e miolo granuloso e conseguiu organizar em poucos minutos toda
uma equipe altamente especializada e contratou novos funcionários e demitiu
outros e precisou tomar uma bolinha para suportar o tempo todo o tempo todo
tinha consciência da importância do jogo exaustou afundou noite adentro sem
atender aos telefonemas da mulher ao lado da equipe batalhando não podia perder
tempo quase à meia-noite tudo estava resolvido e a campanha seria lançada no
dia seguinte não podia perder tempo comprou duas ou três gráficas para imprimir
os cartazes e mandou as fábricas de latas acelerar sua produção precisava de
milhões de unidades dentro de quinze dias prazo máximo porque não podia perder
tempo e tudo pronto voltou pelo meio do aterro as margaridas fantasmagóricas
reluzindo em branco entre o verde do aterro a cabeça quase estourando de prazer
e a sensação nítida clara definida de não ter perdido tempo. Dormiu.
II
No
dia seguinte, acordou mais cedo do que de costume e mandou o chofer rodar pela
cidade. Os cartazes. As ruas cheias de cartazes, as pessoas meio espantadas,
desceu, misturou-se com o povo, ouviu os comentários, olhou, olhou. Os
cartazes. O fundo negro com uma margarida branca, redonda e amarela, destacada,
nítida. Na parte inferior, o slogan:
Ponha
uma margarida na sua fossa.
Sorriu.
Ninguém entendia direito. Dúvidas. Suposições: um filme underground, uma
campanha antitóxicos, um livro de denúncia. Ninguém entendia direito. Mas ele e
sua equipe sabiam. Os jornais e revistas das duas semanas seguintes traziam
textos, fotos, chamadas:
O
índice de poluição dos rios é alarmante.
Não
entre nessa.
Ponha
uma margarida na sua fossa.
Ou
O
asfalto ameaça o homem e as flores.
Cuidado.
Use
uma margarida na sua fossa.
Ou
A
alegria não é difícil.
Fique
atento no seu canto.
Basta
uma margarida na sua fossa.
Jingles.
Programas de televisão. Horário nobre. Ibope. Procura desvairada de margaridas
pelas praças e jardins. Não eram encontradas. Tinham desaparecido
misteriosamente dos parques, lojas de flores, jardins particulares. Todos
queriam margaridas. E não havia margaridas. As fossas aumentaram
consideravelmente. O índice de alcoolismo subiu. A procura de drogas também. As
chamadas continuavam.
O
índice de suicídios no país aumentou em 50%.
Mantenha
distância.
Há
uma margarida na porta principal.
Contratos.
Compositores. Cibernéticos. Informáticos. Escritores. Artistas plásticos.
Comunicadores de massa. Cineastas. Rios de dinheiro corriam pelas folhas de
pagamento. Ele sorria. Indo ou vindo pelo meio do aterro, mandava o motorista
ligar o rádio e ficava ouvindo notícias sobre o surto de margaridite que
assolava o país. Todos continuavam sem entender nada. Mas quinze dias depois: a
explosão.
As
prateleiras dos supermercados amanheceram repletas do novo produto. As pessoas
faziam filas na caixa, nas portas, nas ruas. Compravam, compravam. As aulas
foram suspensas. As repartições fecharam. O comércio fechou. Apenas os
supermercados funcionavam sem parar. Consumiam. Consumavam. O novo produto:
margaridas
cuidadosamente acondicionadas em latas, delicadas latas acrílicas. Margaridas
gordas, saudáveis, coradas em sua profunda palidez. Mil utilidades: decoração,
alimentação, vestuário, erotismo. Sucesso absoluto. Ele sorria. A barriga
aumentava. Indo e vindo pelo aterro, mergulhado em verde, manhã e noite — ele
sorria. Sociólogos do mundo inteiro vieram examinar de perto o fenômeno.
Líderes feministas. Teóricos marxistas. Porcos chauvinistas. Artistas
arrivistas. Milionários em férias. A margarida nacional foi aclamada como a
melhor do mundo: mais uma vez a Europa se curvou ante o Brasil.
Em
seguida começaram as negociações para exportação: a indústria expandiu-se de
maneira incrível. Todos queriam trabalhar com margaridas enlatadas. Ele
pontificava. Desquitou-se da mulher para ter casos rumorosos com atrizes em
evidência. Conferências. Debates. Entrevistas. Tornou-se uma espécie de guru
tropical. Comentava-se em rodinhas esotéricas que seus guias seriam remotos
mercadores fenícios. Ele havia tornado feliz o seu país. Ele se sentia bom e
útil e declarou uma vez na televisão que se julgava um homem realizado por
poder dar amor aos outros. Declarou textualmente que o amor era o seu país.
Comentou-se que estaria na sexta ou sétima grandeza. Místicos célebres
escreviam ensaios onde o chamavam de mutante, iniciado, profeta da Era de
Aquarius. Ele sorria. Indo e vindo. Até que um dia, abrindo uma revista, viu o
anúncio:
Margarida
já era, amizade.
Saca
esta transa:
O
barato é avenca.
III
Não
demorou muito para que tudo desmoronasse. A margarida foi desmoralizada.
Tripudiada. Desprestigiada. Não houve grandes problemas. Para ele, pelo menos.
Mesmo os empregados, tiveram apenas o trabalho de mudar de firma, passando-se
para a concorrente. O quente era a avenca. Ele já havia assegurado o seu futuro
— comprara sítios, apartamentos, fazendas, tinha gordos depósitos bancários na
Suíça. Arrasou com napalm as plantações deficitárias e precisou liquidar todo o
estoque do produto a preços baixíssimos. Como ninguém comprasse, retirou-o de
circulação e incinerou-o.
Só
depois da incineração total é que lembrou que havia comprado todas as sementes
de todas as margaridas. E que margarida era uma flor extinta. Foi no mesmo dia
que pegou a mania de caminhar a pé pelo aterro, as mãos cruzadas atrás, rugas
na testa. Uma manhã, bem de repente, uma manhã bem cedo, tão de repente quanto
aquela outra, divisou um vulto em meio ao verde. O vulto veio se aproximando. Quando
chegou bem perto, ele reconheceu sua ex-esposa.
Ele
perguntou:
–
Procura margaridas?
Ela
respondeu:
–
Já era.
Ele
perguntou:
–
Avencas?
Ela
respondeu:
–
Falou.
Caio
Fernando Abreu
terça-feira, 17 de agosto de 2010
Tudo
isso dói. Mas eu sei que passa, que se está sendo assim é porque deve ser
assim, e virá outro ciclo, depois. Para me dar força, escrevi no espelho do meu
quarto: ‘tá certo que o sonho acabou, mas também não precisa virar pesadelo,
não é?’ É o que estou tentando vivenciar. Certo, muitas ilusões dançaram - mas
eu me recuso a descrer absolutamente de tudo, eu faço força para manter algumas
esperanças acesas, como velas. Também não quero dramatizar e fazer dos
problemas reais monstros insolúveis, becos-sem-saída. Nada é muito terrível. Só
viver, não é? A barra mesmo é ter que estar vivo e ter que desdobrar, batalhar
um jeito qualquer de ficar numa boa. O meu tem sido olhar pra dentro, devagar,
ter muito cuidado com cada palavra, com cada movimento, com cada coisa que me
ligue ao de fora. Até que os dois ritmos naturalmente se encaixem outra vez e
passem a fluir.
Caio
Fernando Abreu
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