segunda-feira, 30 de abril de 2012
O resto imortal
Queria
não morrer de todo. Não o meu melhor. Que o melhor de mim ficasse, já que sobre
o além sou todo dúvida. Queria deixar aqui neste planeta não apenas um
testemunho da minha passagem, pirâmide, obelisco, verbetes numa obscura
enciclopédia, campos onde não crescem mais capim.
Queria
deixar meu processo de pensamento, minha máquina de pensar, a máquina que
processa meu pensamento, meu pensar transformado em máquina objetiva, fora de
mim, sobrevivendo a mim.
Durante
muito tempo, cultivei esse sonho desesperado.
Um
dia, intui. Essa máquina era possível.
Tinha
que ser um livro.
Tinha
que ser um texto. Um texto que não fosse apenas, como os demais, um texto
pensado. Eu precisava de um texto pensante. Um texto que tivesse memória,
produzisse imagens, raciocinasse.
Sobretudo,
um texto que sentisse como eu.
Ao
partir, eu deixaria esse texto como um astronauta solitário deixa um relógio na
superfície de um planeta deserto.
Claro
que eu poderia ter escolhido um ser humano para ser essa máquina que pensasse
como eu penso. Bastava conseguir um aluno. Mas pessoas não são previsíveis. Um
texto é.
A
impressão do meu processo de pensamento não poderia estar na escolha das
palavras nem no rol dos eventos narrados. Teria que estar inscrito no próprio
movimento do texto, nos fluxos da sua dinâmica, traduzido para o jogo de suas
manhas e marés.
Um
texto assim não poderia ser fabricado nem forjado. Só poderia ser desejado. Ele
mesmo escolheria, se quisesse, a hora de seu advento.
Tudo
o que eu poderia fazer nessa direção era estar atento a todos os impulsos,
mesmo os mais cegos, nunca sabendo se o texto estava vindo ou não.
Era
óbvio, um texto assim teria, no mínimo, que levar uma vida humana inteira. Na
melhor das hipóteses.
Uma
questão colocou-se desde o início. A tensão da espera de um tal texto poderia
ser o maior obstáculo para seu surgimento. Quanto a isto, não havia solução. A
questão teria que ser vivida em nível de enigma e conflito, sigilo e
dissimulação.
Evidentemente
que o texto que resultasse desse estado deveria, por força, reproduzí-lo em sua
essencial perplexidade. A máquina-texto que surgisse não seria um todo
harmonioso, já que a harmonia só convém às coisas mortas. O que eu pretendia
era uma coisa viva, uma vida que me sobrevivesse. E a vida é contraditória.
Não
sei mais de esse texto virá. Ou se já veio.
Tudo
o que quero é que, se vier, se lembre de mim tanto quanto eu soube desejá-lo.
Paulo
Leminski
terça-feira, 24 de abril de 2012
Ex/plicação
Não há um sentido único
num
poema
quando alguém
começa a ex-
plicá-lo e
chega ao fim
en-
tão só fica o
ex
do ponto de
partida
beco
(tente outra
vez)
sem saída
Haroldo de Campos
domingo, 22 de abril de 2012
Revolução
Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta
como puro inícío
Como tempo novo
Sem mancha nem vício
Como a voz do mar
Interior de um povo
Como página em branco
Onde o poema emerge
Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação
Sophia de Mello Breyner Andresen
Como chão varrido
Como porta aberta
como puro inícío
Como tempo novo
Sem mancha nem vício
Como a voz do mar
Interior de um povo
Como página em branco
Onde o poema emerge
Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação
Sophia de Mello Breyner Andresen
terça-feira, 17 de abril de 2012
Domina ou cala
Domina ou cala. Não te percas, dando
Aquilo que não tens.
Que vale o César que serias? Goza
Bastar-te o pouco que és.
Melhor te acolhe a vil choupana dada
Que o palácio devido.
Ricardo Reis
sábado, 14 de abril de 2012
Digo o que penso, com esperança.
Penso no que faço, com fé.
Faço o que devo fazer, com amor.
Eu me esforço para ser cada dia melhor,
pois bondade também se aprende.
Mesmo quando tudo parece desabar,
cabe a mim decidir entre rir ou chorar,
ir ou ficar,
desistir ou lutar;
porque descobri,
no caminho incerto da vida,
que o mais importante é o decidir.
Cora Coralina
quarta-feira, 11 de abril de 2012
1.
Amigo, toma para ti o que quiseres,
passeia o teu olhar pelos meus recantos,
e se assim o desejas, dou-te a alma inteira,
com suas brancas avenidas e canções.
2.
Amigo - faz com que na tarde se desvaneça
este inútil e velho desejo de vencer.
Bebe do meu cântaro se tens sede.
Amigo - faz com que na tarde se desvaneça
este desejo de que todas as roseiras
me pertençam.
Amigo,
se tens fome come do meu pão.
3.
Tudo, amigo, o fiz para ti. Tudo isto
que sem olhares verás na minha casa vazia:
tudo isto que sobe pelo muros direitos
- como o meu coração - sempre buscando altura.
Sorris-te - amigo. Que importa! Ninguém sabe
entregar nas mãos o que se esconde dentro,
mas eu dou-te a alma, ânfora de suaves néctares,
e toda eu te dou... Menos aquela lembrança...
... Que na minha herdade vazia aquele amor perdido
é uma rosa branca que se abre em silêncio...
Pablo Neruda - "Crepusculário"
Amigo, toma para ti o que quiseres,
passeia o teu olhar pelos meus recantos,
e se assim o desejas, dou-te a alma inteira,
com suas brancas avenidas e canções.
2.
Amigo - faz com que na tarde se desvaneça
este inútil e velho desejo de vencer.
Bebe do meu cântaro se tens sede.
Amigo - faz com que na tarde se desvaneça
este desejo de que todas as roseiras
me pertençam.
Amigo,
se tens fome come do meu pão.
3.
Tudo, amigo, o fiz para ti. Tudo isto
que sem olhares verás na minha casa vazia:
tudo isto que sobe pelo muros direitos
- como o meu coração - sempre buscando altura.
Sorris-te - amigo. Que importa! Ninguém sabe
entregar nas mãos o que se esconde dentro,
mas eu dou-te a alma, ânfora de suaves néctares,
e toda eu te dou... Menos aquela lembrança...
... Que na minha herdade vazia aquele amor perdido
é uma rosa branca que se abre em silêncio...
Pablo Neruda - "Crepusculário"
sexta-feira, 6 de abril de 2012
O caroço e a andorinha: Uma história infantil para usar o dicionário…
Acéfalo abstraído do
absurdo
Acabrunhado
em sua casca,
em
pouca polpa envolvido.
Acaule
acautelado,
Permaneceu
no chão escondido:
_O
caroço!
Ouviu
dizer de um moço:
_
Nem todo caroço que cai na terra vinga!
Berrou o caroço:
_Eu vim, eu vingo!
Açambarcando todo o terreno.
Ia crescendo o caroço,
sem caule nem raiz.
continuava sempre….
caroço!
Era duro feito osso,
Acastanhado liso
Sem destino e sem juízo
Era acatado, respeitoso
O gigantesco caroço
de acelerado crescimento
era já um monumento,
agora mais duro que cimento!
Colossal caroço tornou-se uma ameaça
Dia a dia ele crescia
Acolá, a cidade era engolida
Era prédio, casa e avenida
Para tanta aberração
Ninguém tinha explicação
Botânicos vinham do mundo inteiro
Gastavam tempo e dinheiro
Chamou-se pois, um batalhão.
Era preciso conter essa expansão.
_Uma explosão! Disse o capitão.
Mil megatons e um caroço que continuava caroço.
A cidade assustada
não conseguia pensar em mais nada.
Chegou então, o verão
Vieram com ele as aves de arribação:
As pequeninas andorinhas em peregrinação
Feito o caroço, um mistério!
Tomavam o que restava da cidade
Em toda parte uma andorinha
Aos milhares iam e vinham
Atrás de suculentos insetos incertos
Desprevenida , certa andorinha perseguia o seu almoço:
_Um gafanhoto gordo.
No ar ele fez um giro
desviando-se do caroço.
A andorinha, coitada!
Chocou-se de bico com o colossal caroço
A Potente pontiaguda córnea proeminência
Rachou sem ponderar a sua excelência:
_O caroço.
Frutas de todo tipo saíram do Colosso
Atemóia, manga, cajá
Maracujá, caju, melancia
Banana, morango, maçã…
Alimento de sobra pra homem e pra pássaro.
Fartando a todos sem desembaraço.
O que restou do caroço gritou:
_ Vinguei!
Berrou o caroço:
_Eu vim, eu vingo!
Açambarcando todo o terreno.
Ia crescendo o caroço,
sem caule nem raiz.
continuava sempre….
caroço!
Era duro feito osso,
Acastanhado liso
Sem destino e sem juízo
Era acatado, respeitoso
O gigantesco caroço
de acelerado crescimento
era já um monumento,
agora mais duro que cimento!
Colossal caroço tornou-se uma ameaça
Dia a dia ele crescia
Acolá, a cidade era engolida
Era prédio, casa e avenida
Para tanta aberração
Ninguém tinha explicação
Botânicos vinham do mundo inteiro
Gastavam tempo e dinheiro
Chamou-se pois, um batalhão.
Era preciso conter essa expansão.
_Uma explosão! Disse o capitão.
Mil megatons e um caroço que continuava caroço.
A cidade assustada
não conseguia pensar em mais nada.
Chegou então, o verão
Vieram com ele as aves de arribação:
As pequeninas andorinhas em peregrinação
Feito o caroço, um mistério!
Tomavam o que restava da cidade
Em toda parte uma andorinha
Aos milhares iam e vinham
Atrás de suculentos insetos incertos
Desprevenida , certa andorinha perseguia o seu almoço:
_Um gafanhoto gordo.
No ar ele fez um giro
desviando-se do caroço.
A andorinha, coitada!
Chocou-se de bico com o colossal caroço
A Potente pontiaguda córnea proeminência
Rachou sem ponderar a sua excelência:
_O caroço.
Frutas de todo tipo saíram do Colosso
Atemóia, manga, cajá
Maracujá, caju, melancia
Banana, morango, maçã…
Alimento de sobra pra homem e pra pássaro.
Fartando a todos sem desembaraço.
O que restou do caroço gritou:
_ Vinguei!
quarta-feira, 4 de abril de 2012
O menino, de Chico Anysio
Vou fazer um apelo. É o
caso de um menino desaparecido.
Ele tem 11 anos, mas
parece menos; pesa 30 quilos, mas parece menos; é brasileiro, mas parece menos.
É um menino normal, ou
seja: subnutrido, desses milhares de meninos que não pediram pra nascer; ao
contrário: nasceram pra pedir.
Calado demais pra sua
idade, sofrido demais pra sua idade, com idade demais pra sua idade. É, como a
maioria, um desses meninos de 11 anos que ainda não tiveram infância.
Parece ser menor
carente, mas, se é, não sabe disso. Nunca esteve na Febem, portanto, não teve
tempo de aprender a ser criança-problema. Anda descalço por amor à bola.
Suas roupas são de
segunda mão, seus livros são de segunda mão e tem a desconfiança de que a sua
própria história alguém já viveu antes.
Do amor não
correspondido pela professora, descobriu que viver dói. Viveu cada verso de
"Romeu e Julieta", sem nunca ter lido a história.
Foi Dom Quixote sem
precisar de Cervantes e sabe, por intuição, que o mundo pode ser um inferno ou
uma badalação, dependendo se ele é visto pelo Nelson Rodrigues ou pelo Gilberto
Braga.
De seu, tinha uma
árvore, um estilingue zero quilômetro e um pássaro preto que cantava no dedo e
dormia em seu quarto.
Tímido até a ousadia,
seus silêncios gritam nos cantos da casa e seus prantos eram goteiras no
telhado de sua alma.
Trajava, na ocasião em
que desapareceu, uns olhos pretos muito assustados e eu não digo isso pra ser
original: é que a primeira coisa que chama a atenção no menino são os grandes
olhos, desproporcionais ao tamanho do rosto.
Mas usava calças curtas
de caroá, suspensórios de elástico, camisa branca e um estranho boné que,
embora seguro pelas orelhas, teimava em tombar pro nariz.
Foi visto pela última
vez com uma pipa na mão, mas é de todo improvável que a pipa o tenha empinado.
Se bem que, sonhador de jeito que ele é, não duvido nada.
Sequestrado, não foi,
porque é um menino que nasceu sem resgate.
Como vocês veem, é um
menino comum, desses que desaparecem às dezenas todas os dias.
Mas se alguém souber de
alguma notícia, me procure, por favor, porque... ou eu encontro de novo esse
menino que um dia eu fui, ou eu não sei o que vai ser de mim.
Chico Anysio
terça-feira, 3 de abril de 2012
Diálogos
Minhas palavras são a metade de um diálogo
obscuro continuando através de séculos impossíveis.
Agora compreendo o sentido e a ressonância
que também trazes de tão longe em tua voz.
Nossas perguntas e resposta se reconhecem
como os olhos dentro dos espelhos.
Olhos que choraram. Conversamos dos dois extremos da noite,
como de praias opostas. Mas com uma voz que não se importa...
E um mar de estrelas se balança entre o meu pensamento e o teu.
Mas um mar sem viagens.
Cecilia Meireles, em Para mim. A história das minhas loucuras
domingo, 1 de abril de 2012
Porto
Tempero da minha cama,
te
pinto de azul
peço ao mar que arraste suas barbas
para dentro de um novo sonho azul.
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